O novo “Decreto de Armas”

(Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

Segundo pesquisas a partir dos registros oficiais do governo, ao longo do governo de Jair Bolsonaro teria crescido em 474% o número de cidadãos com armas registradas legalmente.

Apesar da sigla “CAC” envolver três categorias diferentes, os decretos editados ao longo do Governo Bolsonaro privilegiaram acentuadamente os “Atiradores”[1] e fizeram expandir o comércio no setor, assim como também geraram um incremento numa categoria de serviços: os Clubes de Tiro. Segundo registros do Exército, eram 163 Clubes de Tiro em 2018, em 2021 passaram para 348 e, até julho de 2022, chegaram a 2.095.

Agora, um decreto já editado pelo novo Governo Federal (Decreto nº 11.366) atinge diretamente essa categoria particular: os conhecidos “CAC” (Colecionadores, Atiradores e Caçadores)[2]. O cadastro dessas armas agora passa para o Sinarm[3], sistema gerenciado pela Polícia Federal, excetuando-se aquelas de patrimônio das Forças Armadas, Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, porque isso implicaria mudança do disposto no Estatuto do Desarmamento[4], que é uma lei, portanto superiora ao decreto. Há, entretanto, uma questão jurídica de hierarquia de normas a ser enfrentado: a lei (Estatuto do Desarmamento) promulgada no então Governo “Lula 1” e ainda não alterada, prevê que essa atribuição é do Comando do Exército[5] e não da Polícia Federal, daí parece surgir uma ilegalidade formal nesse decreto…

Esse crescimento de armas regulares em circulação tem marcos históricos de início, meio e fim; início: foi em 21 de maio de 2019, que pelo Decreto nº 9.797, se incluiu um parágrafo (§ 10, III) no então vigente  Decreto nº 9.785, de 7 de maio de 2019, para permitir que atiradores pudessem possuir até 30 armas de uso permitido; não bastasse, logo em seguida, em 25 de junho do mesmo ano, veio o Decreto nº 9.846, alterando toda a matéria e permitindo que atiradores pudessem possuir 30 armas de uso permitido (Art. 3º, I, c) e outras 30 armas de uso restrito (Art. 3º, II, c); meio: isso prevaleceu até que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar um pedido de Medida Cautelar na ADI 6139 decidiu, inicialmente no dia 14 de maio de 2021, “declarar inconstitucional o art. 3º, II, “a”, “b” e “c”, do Decreto nº 9.846, de 25 de junho de 2019” e, mais tarde, em 20 de setembro de 2022 “suspender a eficácia” desses mesmos dispositivos; fim: o Decreto nº 11.366, de 2023.

Um dos pontos mais controvertidos ao longo das fases desse cenário foi a de se permitir que civis, na condição de “Atiradores” (CAC) pudessem adquirir as chamadas “armas de uso restrito” (e obviamente suas munições) que, por definição literal e pelo senso comum, não deveriam estar nas mãos de qualquer pessoa, mas estariam restritas às forças de segurança e Forças Armadas.

O fato é que o tiro, como esporte olímpico, jamais atraiu grande número de adeptos no Brasil, seja por uma questão cultural de aversão às armas de fogo, seja por outros fatores como o real perigo no seu manuseio, também pela rígida burocracia estatal no controle de armas e munições, somado à necessidade de constante treinamento por parte dos atletas para atingir níveis de competitividade no ranking internacional e, finalmente, mas não menos importante, pelo elevado custo financeiro para a aquisição de armas e munições. Veja-se que o portal governamental Rede do Esporte destaca: “Depois das conquistas na Antuérpia-1920, o Brasil nunca mais havia subido ao pódio olímpico no tiro esportivo. Isso até os Jogos Rio 2016, quando Felipe Wu voltou a faturar uma medalha na modalidade. Na pistola de ar 10m, o brasileiro competiu pelo ouro até o último tiro, mas acabou superado pelo vietnamita Xuan Hoang e ficou com a prata.”[6]. Dados no “Relatório de Gestão Exercício 2021” da Confederação Brasileira de Tiro Esportivo reforçam esse argumento, ao revelarem que o universo federado no tiro esportivo gira em torno de 900 atletas[7].

Mas então, onde se enquadrariam os atuais CACs? E qual o interesse deles na aquisição e uso, até mesmo, de armas de uso restrito?

Nada obriga que os “novos CACs” sejam federados na entidade agremiadora de esportistas, basta que estejam cadastrados num dos tantos “novos Clubes de Tiro”, para que se credenciem como atiradores esportivos e obtenham registro no sistema de controle do Exército (Sigma); numa analogia grosseira, seriam algo como futebolistas de várzea, ou seja, praticantes do esporte sem interesse em competições da categoria; a prática então não se revela verdadeiramente esportiva, mas recreativa.

A prática esportiva recreativa seria, portanto, errada ou ilegal? Claro que não…

Em conclusão, parece-me que dois dispositivos do Decreto nº 11.366, de 1º de janeiro de 2023, talvez sejam suficientes para levar a prática de tiro pelos “novos CACs” e até mesmo os empreendimentos dos Clubes de Tiro para o aniquilamento, apesar de não poder o Governo invadir o direito de propriedade privada (Constituição Federal, Art. 170, II), relativamente às armas adquiridas segundo o ordenamento jurídico então vigente (Constituição Federal, Art. 5º, XXXVI), tampouco violar o direito à livre iniciativa (Constituição Federal, Arts. 1º, IV, e 170, caput); o primeiro deles é o artigo 14 do vigente Decreto nº 11.366, que agora expressamente proíbe o porte de trânsito de arma de fogo municiada por atiradores, inclusive no trajeto entre sua residência e o local de prática de tiro e, não bastasse, ainda o artigo 28 passou a proibir a aquisição de insumos para a recarga de munições até a publicação da nova regulamentação do Estatuto do Desarmamento, o que levará à morte por inanição.

Coisa bastante diversa de tudo o que até aqui se expôs – e ao qual não podemos dar de ombros em sede de conclusão – é o fato de que, em 23 de outubro de 2005, ainda sob o Governo “Lula 1”, todo o eleitorado brasileiro foi chamado às urnas para responder, em referendo popular, à seguinte pergunta: “o comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?”; prevaleceu a vontade democrática da maioria (59 milhões dos eleitores), que respondeu “não”, tornando letra morta o artigo 35 do Estatuto do Desarmamento (“Art. 35. É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º desta Lei. § 1º. Este dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005. § 2º. Em caso de aprovação do referendo popular, o disposto neste artigo entrará em vigor na data de publicação de seu resultado pelo Tribunal Superior Eleitoral.”).

Assim, a despeito das respeitáveis opiniões contrárias e favoráveis sobre o tema, a democracia já se manifestou de  forma direta pelo referendo e qualquer tentativa atual de substituí-lo, a partir de agora pela via indireta (processo legislativo congressual) dará ares de ilegitimidade, ainda que sob o verniz da legalidade; de minha parte, penso que, respeitados os direitos de propriedade dos atuais proprietários de armas e de livre iniciativa dos empresários de Clubes de Tiro, as atuais medidas reguladoras impostas sejam mais adequadas aos valores, costumes e ordem jurídica historicamente adotados pela sociedade brasileira, bem como mais interessantes à garantia de segurança pública.

Resta ao Governo Federal, agora em sua terceira gestão, efetivamente agir diretamente sobre o contrabando de armas e munições que formam os ilegais arsenais do crime organizado e que não se submeteram a qualquer dos decretos de Jair Bolsonaro nem se submeterão ao decreto de Lula; sempre é bom lembrar que essa atribuição é constitucionalmente afeta ao Governo Federal, por suas Forças Armadas e Polícia Federal (Constituição Federal, Art. 21, XXII)[8].

Prof. Dr. Azor Lopes da Silva Júnior,
Advogado, Pesquisador do IBSP e Jornalista MTb 0066065/SP

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NOTAS

[1] O conceito de “atirador” é ligado ao esporte e vem definido no Decreto nº 10.030, de 30 de setembro de 2019: “Art. 52.  Para fins do disposto neste Regulamento, considera-se: I – atirador desportivo – a pessoa física registrada no Comando do Exército e que pratica habitualmente o tiro como esporte; e II – habitualidade – a prática frequente do tiro desportivo realizada em local autorizado, em treinamentos ou em competições. § 1º A habitualidade da prática do tiro desportivo será comprovada mediante declaração emitida por entidade de tiro ou agremiação que confirme frequência mínima de seis jornadas em estandes de tiro, em dias alternados, para treinamento ou participação em competições, no período de doze meses. (este parágrafo foi incluído posteriormente pelo Decreto nº 10.627, de 2021).

[2] DECRETO Nº 11.366, DE 1º DE JANEIRO DE 2023. Art. 1º  Este Decreto: I – suspende os registros para a aquisição e transferência de armas e de munições de uso restrito por caçadores, colecionadores, atiradores e particulares; II – restringe os quantitativos de aquisição de armas e de munições de uso permitido; III – suspende a concessão de novos registros de clubes e de escolas de tiro; IV – suspende a concessão de novos registros de colecionadores, de atiradores e de caçadores; V – institui grupo de trabalho para apresentar nova regulamentação à Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11366.htm. Acesso em 03 jan. 2023.

[3] DECRETO Nº 11.366, DE 1º DE JANEIRO DE 2023. Art. 2º  As armas de fogo de uso permitido e de uso restrito adquiridas a partir da edição do Decreto nº 9.785, de 7 de maio de 2019, serão cadastradas no Sistema Nacional de Armas – Sinarm, no prazo de sessenta dias, ainda que cadastradas em outros sistemas, ressalvado o disposto no parágrafo único do art. 2º da Lei nº 10.826, de 2003.

[4] Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003. Art. 2º. Ao Sinarm compete: […] Parágrafo único. As disposições deste artigo não alcançam as armas de fogo das Forças Armadas e Auxiliares, bem como as demais que constem dos seus registros próprios.

[5] Art. 9º. Compete ao Ministério da Justiça a autorização do porte de arma para os responsáveis pela segurança de cidadãos estrangeiros em visita ou sediados no Brasil e, ao Comando do Exército, nos termos do regulamento desta Lei, o registro e a concessão de porte de trânsito de arma de fogo para colecionadores, atiradores e caçadores e de representantes estrangeiros em competição internacional oficial de tiro realizada no território nacional.

[6] Disponível em: http://rededoesporte.gov.br/pt-br/megaeventos/olimpiadas/medalhistas/tiro-esportivo. Acesso em 03 jan. 2023.

[7] Disponível em: https://cbte.org.br/wp-content/uploads/2021_relatorio_gestao.pdf. Acesso em 03 jan. 2023.

[8] Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 21. Compete à União: […] XXII – executar os serviços de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; Art. 144. […] § 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a: […] III – exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

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