Pesquisas com seres humanos: surge a Lei nº 14.874

Azor Lopes da Silva Júnior, Prof. Dr.

http://lattes.cnpq.br/6088271460892546

azor.lopes@ibsp.org.br

 

O Diário Oficial da União de 29 de maio de 2024 publicou a Lei nº 14.874, de 28 de maio de 2024, que dispõe sobre princípios, diretrizes e regras para a condução de pesquisas com seres humanos por instituições públicas ou privadas e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, e que terá um vacatio legis de 90 dias (“Art. 65. Esta Lei entra em vigor após decorridos 90 (noventa) dias de sua publicação oficial“). A grande novidade é que seu artigo 63 dispõe:

Art. 63. Esta Lei e seus termos aplicar-se-ão às pesquisas com seres humanos em todas as áreas do conhecimento, no que couber, e conforme regulamento.

Parágrafo único. Regulamento disporá sobre eventuais especificidades das pesquisas em ciências humanas e sociais, com vistas ao progresso da ciência e à devida aplicação desta Lei.

 

A inclusão das ciências humanas e sociais é a grande novidade normativa, posto que a preocupação com a criação de protocolos voltados para a questão da eticidade da pesquisa[1] envolvendo seres humanos – e a consequente normatização sobre o tema –  surgiriam somente em 1996, por resolução do Plenário do Conselho Nacional de Saúde (Resolução CNS nº 196, de 10 de outubro de 1996), portanto elaborada para aplicação no campo das ciências da saúde.

Exatamente por conta desse histórico, antes do advento dessa nova lei (Lei nº 14.874, de 28 de maio de 2024), sempre sustentamos que nem toda pesquisa envolvendo a aplicação de questionários ou entrevistas com seres humanos implicaria necessária e prévia submissão a Comitê de Ética, nem mesmo de adoção dos protocolos estabelecidos pelo Conselho Nacional de Saúde, inclusive submissão a Comitê de Ética, isso porque nem todas se enquadrariam naquilo que vem disciplinado na Resolução CNS nº 510, de 07 de abril de 2016 e na Resolução CNS nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Não nos passava despercebido que na Resolução CNS nº 466, de 12 de dezembro de 2012 restou estabelecido que, dadas suas particularidades, as especificidades éticas das pesquisas nas ciências sociais e humanas e de outras, que se utilizam de metodologias próprias dessas áreas, seriam contempladas em resolução complementar; o problema é que tal “resolução complementar” jamais veio e já nos parecia também preocupante,  quanto à legalidade e legitimidade, caso tal resolução complementar tivesse vindo a partir daquele colegiado (Conselho Nacional de Saúde), para estabelecer protocolos éticos e científicos dirigidos a outras áreas do conhecimento, onde os objetivos e métodos de pesquisa não se confundem com aqueles próprios das ciências da saúde.

Bem verdade que a referida Resolução CNS nº 510, de 07 de abril de 2016, já em seu artigo 1º, deixa claro sua aplicação no campo das Ciências Humanas e Sociais quando os “procedimentos metodológicos envolvam a utilização de dados diretamente obtidos com os participantes ou de informações identificáveis ou que possam acarretar riscos maiores do que os existentes na vida cotidiana, na forma definida nesta Resolução”, o que revela excepcionalidade e, não bastasse, o parágrafo único desse mesmo artigo 1º, em seu inciso VII, expressamente exclui a necessidade de registro e avaliação pelo sistema CEP/CONEP daquela “pesquisa que objetiva o aprofundamento teórico de situações que emergem espontânea e contingencialmente na prática profissional, desde que não revelem dados que possam identificar o sujeito”. Mas, como nem todos os colegiados e congregações das universidades são compostos por pesquisadores que tenham formação ou habilidades para análise do campo jurídico – e também porque nenhum pesquisador poderia dar de ombros ao respeito à ética em suas pesquisas – proliferaram comitês com atuação meramente formal, sem grande apego à essência, que simplesmente passaram a ser órgãos homologadores de pesquisas que nem sempre precisariam de qualquer aval, sob o prisma do direito fundamental da livre a expressão da atividade intelectual e científica, independentemente de censura ou licença, assegurado pelo artigo 5º, inciso IX, da Constituição da República Federativa do Brasil.

A partir de agora, por força da nova lei, não há mais o que se discutir; passado o período de vacatio legis e sobrevindo o Regulamento que deverá dispor sobre as especificidades de suas pesquisas, os princípios, diretrizes e regras para a condução, nos campos das ciências humanas e sociais, de pesquisas envolvendo seres humanos, sejam conduzidas por instituições públicas ou privadas, e que deverão ser objeto de cuidadosa atenção tanto por essas instituições como também pelos seus pesquisadores, porque passa a constituir infração ética e sujeita o infrator às sanções disciplinares previstas na legislação do conselho profissional ao qual é vinculado, sem prejuízo das sanções civis e penais cabíveis (confira-se o artigo 59 e seguintes da Lei nº 14.874, de 28 de maio de 2024.

Ainda que pendente de regulamentação por ato do Poder Executivo, como a nova lei institui  um Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, composto por uma instância nacional de ética em pesquisa e uma instância de análise ética em pesquisa (representada pelos Comitê de Ética em Pesquisa – CEPs), outra questão que deve ser objeto de atenção especial, por parte das instituições públicas e privadas que realizam pesquisa, deve ser voltada à criação e credenciamento (ou acreditamento, conforme o grau de risco envolvido na pesquisa, de acordo com a lei e a sua futura regulamentação: risco elevado, moderado ou baixo) de seu próprio Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) perante a instância nacional de ética em pesquisa. Essa instância nacional passa a ser o colegiado interdisciplinar e independente, integrante do Ministério da Saúde, sob a coordenação da área técnica responsável pelo campo da ciência e tecnologia, de caráter normativo, consultivo, deliberativo e educativo, competente para proceder à regulação, à fiscalização e ao controle ético da pesquisa, com vistas a proteger a integridade e a dignidade dos participantes da pesquisa, e para contribuir para o desenvolvimento da pesquisa dentro de padrões éticos.

Notas

[1] As pesquisas envolvendo seres humanos devem atender às exigências éticas e científicas fundamentais. III.1 – A eticidade da pesquisa implica em: a) consentimento livre e esclarecido dos indivíduos-alvo e a proteção a grupos vulneráveis e aos legalmente incapazes (autonomia). Neste sentido, a pesquisa envolvendo seres humanos deverá sempre tratá-los em sua dignidade, respeitá-los em sua autonomia e defendê-los em sua vulnerabilidade; b) ponderação entre riscos e benefícios, tanto atuais como potenciais, individuais ou coletivos (beneficência), comprometendo-se com o máximo de benefícios e o mínimo de danos e riscos; c) garantia de que danos previsíveis serão evitados (não maleficência); d) relevância social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimização do ônus para os sujeitos vulneráveis, o que garante a igual consideração dos interesses envolvidos, não perdendo o sentido de sua destinação sócio-humanitária (justiça e eqüidade). III.2- Todo procedimento de qualquer natureza envolvendo o ser humano, cuja aceitação não esteja ainda consagrada na literatura científica, será considerado como pesquisa e, portanto, deverá obedecer às diretrizes da presente Resolução. Os procedimentos referidos incluem entre outros, os de natureza instrumental, ambiental, nutricional, educacional, sociológica, econômica, física, psíquica ou biológica, sejam eles farmacológicos, clínicos ou cirúrgicos e de finalidade preventiva, diagnóstica ou terapêutica. III.3 – A pesquisa em qualquer área do conhecimento, envolvendo seres humanos deverá observar as seguintes exigências: a) ser adequada aos princípios científicos que a justifiquem e com possibilidades concretas de responder a incertezas; b) estar fundamentada na experimentação prévia realizada em laboratórios, animais ou em outros fatos científicos; c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter não possa ser obtido por outro meio; d) prevalecer sempre as probabilidades dos benefícios esperados sobre os riscos previsíveis; e) obedecer a metodologia adequada. Se houver necessidade de distribuição aleatória dos sujeitos da pesquisa em grupos experimentais e de controle, assegurar que, a priori, não seja possível estabelecer as vantagens de um procedimento sobre outro através de revisão de literatura, métodos observacionais ou métodos que não envolvam seres humanos; f) ter plenamente justificada, quando for o caso, a utilização de placebo, em termos de não maleficência e de necessidade metodológica; g) contar com o consentimento livre e esclarecido do sujeito da pesquisa e/ou seu representante legal; h) contar com os recursos humanos e materiais necessários que garantam o bem-estar do sujeito da pesquisa, devendo ainda haver adequação entre a competência do pesquisador e o projeto proposto; i) prever procedimentos que assegurem a confidencialidade e a privacidade, a proteção da imagem e a não estigmatização, garantindo a não utilização das informações em prejuízo das pessoas e/ou das comunidades, inclusive em termos de auto-estima, de prestígio e/ou econômico – financeiro; j) ser desenvolvida preferencialmente em indivíduos com autonomia plena. Indivíduos ou grupos vulneráveis não devem ser sujeitos de pesquisa quando a informação desejada possa ser obtida através de sujeitos com plena autonomia, a menos que a investigação possa trazer benefícios diretos aos vulneráveis. Nestes casos, o direito dos indivíduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado, desde que seja garantida a proteção à sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida; l) respeitar sempre os valores culturais, sociais, morais, religiosos e éticos, bem como os hábitos e costumes quando as pesquisas envolverem comunidades; m) garantir que as pesquisas em comunidades, sempre que possível, traduzir-se-ão em benefícios cujos efeitos continuem a se fazer sentir após sua conclusão. O projeto deve analisar as necessidades de cada um dos membros da comunidade e analisar as diferenças presentes entre eles, explicitando como será assegurado o respeito às mesmas; n) garantir o retorno dos benefícios obtidos através das pesquisas para as pessoas e as comunidades onde as mesmas forem realizadas. Quando, no interesse da comunidade, houver benefício real em incentivar ou estimular mudanças de costumes ou comportamentos, o protocolo de pesquisa deve incluir, sempre que possível, disposições para comunicar tal benefício às pessoas e/ou comunidades; o) comunicar às autoridades sanitárias os resultados da pesquisa, sempre que os mesmos puderem contribuir para a melhoria das condições de saúde da coletividade, preservando, porém, a imagem e assegurando que os sujeitos da pesquisa não sejam estigmatizados ou percam a autoestima; p) assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefícios resultantes do projeto, seja em termos de retorno social, acesso aos procedimentos, produtos ou agentes da pesquisa; q)assegurar aos sujeitos da pesquisa as condições de acompanhamento, tratamento ou de orientação, conforme o caso, nas pesquisas de rastreamento; demonstrar a preponderância de benefícios sobre riscos e custos; r) assegurar a inexistência de conflito de interesses entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa ou patrocinador do projeto; s) comprovar, nas pesquisas conduzidas do exterior ou com cooperação estrangeira, os compromissos e as vantagens, para os sujeitos das pesquisas e para o Brasil, decorrentes de sua realização. Nestes casos deve ser identificado o pesquisador e a instituição nacionais co-responsáveis pela pesquisa. O protocolo deverá observar as exigências da Declaração de Helsinque e incluir documento de aprovação, no país de origem, entre os apresentados para avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa da instituição brasileira, que exigirá o cumprimento de seus próprios referenciais éticos. Os estudos patrocinados do exterior também devem responder às necessidades de treinamento de pessoal no Brasil, para que o país possa desenvolver projetos similares de forma independente; t) utilizar o material biológico e os dados obtidos na pesquisa exclusivamente para a finalidade prevista no seu protocolo; u) levar em conta, nas pesquisas realizadas em mulheres em idade fértil ou em mulheres grávidas, a avaliação de riscos e benefícios e as eventuais interferências sobre a fertilidade, a gravidez, o embrião ou o feto, o trabalho de parto, o puerpério, a lactação e o recém-nascido; v) considerar que as pesquisas em mulheres grávidas devem, ser precedidas de pesquisas em mulheres fora do período gestacional, exceto quando a gravidez for o objetivo fundamental da pesquisa; x) propiciar, nos estudos multicêntricos, a participação dos pesquisadores que desenvolverão a pesquisa na elaboração do delineamento geral do projeto; e z) descontinuar o estudo somente após análise das razões da descontinuidade pelo CEP que a aprovou.

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