Reclama-se muito que haja um abismo entre o mundo do Direito – habitado pelos juristas, com seu modo todo peculiar de discurso e terminologia técnica (o jurisdiquês) – e o mundo real do cidadão comum, daí porque a frequência de meus artigos provocativos (“Eu não sou Ministro eu não sou magnata; eu sou do povo, eu sou um Zé Ninguém…”; “Abusos confusos na terra sem lei”; “No país do futebol: jogo prorrogado, zero a zero começa tudo de novo”; “Mais que uma Pandemia”; “O fato, a verdade e a crença” e outros [publicados em DLNEWS: https://dlnews.com.br/colunistas].
E com esse mesmo tom de provocação à reflexão, neste artigo destaco algumas questões técnicas do Direito, que refletem diretamente, na forma de um grave problema, que afeta o cotidiano em todas as cidades brasileiras: o tráfico de drogas.
Não estou chamando à discussão o tema de liberação de drogas para consumo, ainda que recreativo, mas aponto como foco um tipo de crime que envolve, não só uma cadeia produtiva e comercial ilegal, e que desborda para o aliciamento e corrupção de menores, mas também para colateral efeito de causar uma incidência cada vez mais crescente de crimes patrimoniais (furtos e roubos), desaguando noutro crime (a receptação dessas coisas roubadas ou furtadas), formando um cenário que alimenta a corrupção policial e que, até mesmo, desencadeia em mais um problema gravíssimo de saúde pública: a dependência química.
Por uma série de razões que aqui não convém pontuar, o fato é que o consumo e o tráfico de drogas são proibidos no Brasil; bem por isso a Constituição Federal colocou o tráfico de drogas equiparado com os crimes hediondos (espécie das mais repulsivas e punidas com maior rigor penal), a tal ponto que a Lei dos Crimes Hediondos, de início, nos anos 90, estabelecia que os condenados cumpririam a pena integralmente no regime fechado (penitenciárias e, até mesmo, em Regime Disciplinar Diferenciado).
Acontece que no dia 23 de fevereiro de 2006 – passados já mais de 16 anos em que o Supremo Tribunal Federal vinha repetidamente decidindo pela constitucionalidade do rigor imposto pela Lei dos Crimes Hediondos – rompe-se essa jurisprudência e a Corte Maior, ao julgar o Habeas Corpus 82.959-7, (“Caso Oséias de Campos”), decidiu por “6 x 5” mudar sua orientação e declarar no sentido oposto, para firmar que a inconstitucionalidade da Lei dos Crimes Hediondos, no ponto em que impedia a possibilidade de progressão do regime do cumprimento da pena no caso dos crimes hediondos e daqueles equiparados a eles (como é o caso do tráfico de drogas); seguidamente, em 28 de março de 2007, o Congresso Nacional promulga a Lei nº 11.464, alterando-se a lei para permitir esse “benefício” (cumprimento da pena em regime semiaberto e aberto) também aos condenados por tráfico de drogas.
Aqueles anos – 2006/2007 – seriam um divisor de águas no tema, pois a própria Lei de Drogas, promulgada em 2006, já previa um outro benefício aos condenados por tráfico: surgia o “tráfico privilegiado”; nessa hipótese, quando traficante fosse primário (sem condenação anterior), tivesse, até então, “bons antecedentes” e não houvesse provas de que ele se dedicasse à atividades criminosas (além daquela em que se via sendo condenado) e nem integrasse organização criminosa (provar isso nem sempre é tão fácil), ele deveria ter uma redução da pena em um sexto a até dois terços.
Na prática, condenado a pena mínima de 5 anos, ela “cairia” para 1 ano e 8 meses e, nesses casos, seria possível, até mesmo, nem levá-lo ao cárcere, mas simplesmente lhe aplicar penas alternativas: prestação pecuniária (semelhante a uma multa); perda de bens e valores (o produto do crime); limitação de fim de semana (aos sábados e domingos, por 5 (cinco) horas diárias, recolher-se na “Casa de Albergado”); prestação de serviço à comunidade (atribuição de tarefas gratuitas ao condenado, a serem prestadas em entidades assistenciais, hospitais, escolas, orfanatos etc.); e interdição temporária de direitos (por exemplo, proibição de frequentar determinados lugares).
E a coisa não pararia por aí; com a reforma do Código de Processo Penal, trazida pelo chamado “Pacote Anticrime” de 2019, idealizado pelo ex-Ministro da Justiça Sérgio Moro, incorporou-se ao direito brasileiro um novo instituto despenalizador chamado “acordo de não persecução penal”, a ser proposto pelo Promotor de Justiça e cabível quando o criminoso confessa um crime não violento, cuja pena mínima prevista seja inferior a 4 anos, mediante certas condições que, basicamente, se resumem ao dever de reparar o dano causado e ao aceite, pelo criminoso, de uma daquelas penas alternativas.
Veja-se atentamente, então: mesmo um crime equiparado aos mais abomináveis, pela própria “Constituição Cidadã” – o tráfico de drogas –, de 2006 para cá, a lei e os tribunais vêm tratando esse crime com menos rigor, seja na fase de cumprimento de pena, quanto também no momento da condenação e, até mesmo, na forma de despenalização, pela possibilidade de um acordo de não persecução penal; parece um tanto paradoxal, mas esse é o fato…
E, para que não digam que isso seja só um exercício hipotético de uma tese jurídica, mostro que recentemente (18 de maio de 2021) o Tribunal de Justiça de São Paulo – um dos mais rigorosos do país – decidiu, no caso de uma condenação ao cumprimento de uma pena de pífios 2 anos, 3 meses e 3 dias, havida em Ribeirão Preto, por tráfico de considerável quantidade de drogas (146 micropontos de LSD), o processo deveria retornar à comarca, para que o Ministério Público se manifestasse sobre a possibilidade de um acordo de não persecução penal…
Chamo esse tema à reflexão, porque sabidamente o microtráfico empesteia todos os 5.565 municípios de nosso país, destruindo vidas, famílias e sonhos, e gerando um impacto de despesas incalculável; como exemplo, vale citar projeto “Acolhimento em Comunidades Terapêuticas de dependentes químicos que se encontram em situação de rua”, lançado timidamente no final do ano passado (2020), em que o Governo Federal destinou R$ 10,2 milhões, para disponibilizar também pífias 1.456 vagas de internação compulsória de dependentes químicos, em 287 entidades de todo o país.
O assunto, portanto, não merece ser discutido exclusivamente no campo da ideologia (pró ou contra), mas com olhar para a saúde pública e de suas consequências na própria criminalidade; nem se diga, teorizando superficialmente, que criminalidade, violência e até preços das drogas desapareceriam com a legalização do uso e do comércio, porque, mesmo num hipotético cenário deste, o comércio legal certamente conviveria, dividiria espaço e estabeleceria concorrência com uma rede de comércio ilegal, tal e qual já se vê a olho nu, no comércio ilegal de cigarros contrabandeados e de produtos “pirateados”.
Penso, que os tribunais e também nós – os juristas – deveríamos ter os olhos mais abertos à realidade social e, ao mesmo tempo, cultuar uma humildade intelectual capaz de não nos permitir dar asas – de envergadura maior que a necessária – aos processos de interpretação da Constituição Federal e das leis…
(Este artigo foi publicado com o título “Entre o discurso e a realidade: as regras jurídicas e o tráfico de drogas” originalmente em https://dlnews.com.br/colunistas?id=323/entre-o-discurso-e-a-realidade:-as-regras-juridicas-e-o-trafico-de-drogas
redação
Últimas Postagens de: redação (Veja Todos)
- IBSP OUTORGA MEDALHAS DO MÉRITO ACADÊMICO PÓS-CONGRESSO - 28 de outubro de 2024
- ANAIS DO CONGRESSO IBSP SALVADOR 2024 - 22 de outubro de 2024
- VII CONGRESSO IBSP SALVADOR - 10 de outubro de 2024