Por Gilberto Protásio dos Reis, Dr.
Presidente do Conselho Editorial da Revista do Instituto Brasileiro de Segurança Pública (RIBSP)
Que os automóveis tenham um pé, ou melhor, uma roda na política, em contextos de crimes, é coisa sabida desde o assassinato do arquiduque Franscisco Ferdinando, numa rua em Sarajevo, capital da Bósnia, quando se deslocava em um automóvel, no fatídico 28 de junho de 1914. O fato deu início à primeira Guerra Mundial. Algo parecido pode ser afirmado quanto às circunstâncias da morte do presidente americano John F. Kennedy, atingido por disparos de arma de fogo a longa distância, enquanto era conduzido em um veículo aberto, por uma das ruas de Dallas, no Texas, Estados Unidos, no dia 22 de novembro de 1963.
No último dia 10, as palavras automóvel, política e crime voltaram a ser encontradiças na mesma frase. Desta vez, porém, o país é outro, as vítimas não são famosas, nem estão dentro do veículo, mas sim apenas genéricas, porque são protegidas todas as pessoas da sociedade que de alguma forma seriam afetadas por certas condutas ilegais de condutores de automóveis. Tal união de palavras acaba de dar-se por meio da Lei nº 13.804, que alterou o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) e previu reflexos de supressão do direito de conduzir automóveis em pessoas que utilizem esse meio de locomoção para cometer certos crimes (Confira o texto integral da lei em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13804.htm).
A nova lei nacional reforçou o alcance da proteção da sociedade que resulta do trabalho de pelo menos dois tipos de autoridades públicas – os magistrados que julguem e os policiais militares –, aqueles por poderem agir mais diretamente sobre a segurança viária, modificando o direito objetivo de quem transgrida deveres de motorista fazendo do carro um instrumento auxiliar de crimes. Já o segundo grupo passa a ter algo a mais para fiscalizar em “blitz” de trânsito: se na ficha criminal do condutor conste ou não determinação judicial impactante sobre a sua Carteira Nacional de Habilitação (CNH).
Quem leia a ementa do texto legal encontrará ali a informação resumida de que se trata de “medidas de prevenção e repressão ao contrabando, ao descaminho, ao furto, ao roubo e à receptação”. Quem, no entanto, percorra com os olhos os artigos dessa brevíssima inovação legislativa notará que o direito à vida, à liberdade e à propriedade foram os verdadeiros impactados pela alteração que acaba de passar pela chancela do presidente da República Jair Bolsonaro, do ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro e do ministro da Economia Paulo Guedes.
A vida afetada pela nova Lei é a do condutor de veículo que use veículo para cometer uma das ações referidas (receptar, promover o descaminho ou contrabandear). A afetação não é, no entanto, radical e irreversível, mas apenas quanto ao direito de conduzir automóveis, pois o portador de Carteira Nacional de Habilitação passa a ficar sujeito a ter cassada sua, ou a não poder ter uma por cinco anos (conforme o texto do novo Art. 278-A do CTB). Tal impacto pessoal poderá resultar também de iniciativa do juiz de Direito, que poderá, se o autor de algum desses delitos for preso em flagrante, suspender a permissão ou habilitação para dirigir, ou proibir que ele obtenha a CNH (veja o § 2º do Art. 278-A do CTB, com a redação dada pela Lei nº 13.804/2019: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9503.htm#art278a).
Vai longe o século XVII, mas uma certa ideia de John Locke (1632-1704), a de que devesse haver a conversão de três direitos naturais (vida, liberdade e propriedade) em direitos civis, ganha com essa nova lei brasileira um ar de atualidade. Pelo imaginado na mente do referido filósofo, tais direitos deveriam passar a ser parte do contrato social e, com isso, o Estado faria deles uma obrigação sua, em prol dos seus cidadãos. Com essa nova Lei o legislador brasileiro complica oportunamente a vida dos condutores de veículos que passem dos limites não das leis de trânsito, mas a dos fins da propriedade que tenham em mãos, à medida que restringe a liberdade que possuir uma CNH dá a quem não deseje sofrer aborrecimentos numa “blitz” de trânsito.
Uma boa análise a respeito de uma lei não pode merecer tal adjetivo, se deixar de tratar do que o legislador não podia ter esquecido, mas esqueceu: os representantes do povo que exerceram a autoridade legislativa enumeraram expressamente os crimes de receptação, descaminho, contrabando, previstos nos artigos 180[1], 334[2] e 334-A[3] do Código Penal, todavia essa tentativa de criminalizar ou descriminalizar condutas outra vez foi marcada pelo esquecimento (ou omissão) quanto às figuras delitivas correspondentes e previstas no Código Penal Militar (a receptação é prevista nos artigos 254 a 256[4], ressaltando-se que não há correspondente tipo penal militar quanto ao contrabando e ao descaminho), notadamente quando se teve uma expansão da competência da Justiça Militar por força da Lei nº 13.491[5], de 13 de outubro de 2017. Observe também que, a despeito de haver referido aos crimes de furto e roubo, a nova lei não impõe as mesmas medidas administrativas de restrição à habilitação para dirigir em relação a condenados por furto e roubo.
Em resumo, a Lei nº 13.804/2019 é de fácil e simples aplicação sobre o público civil, mas exigirá das autoridades judiciárias militares um exercício de interpretação mais sofisticado e complexo, quando o condutor do veículo for militar. Quanto ao efeito prático, o novo texto legal equivale a colocar na própria cena das fiscalizações de trânsito. a força da caneta dos magistrados que julgam esses crimes. Não chega a evitar que uma versão atual de Francisco Ferdinando ou de JFK sejam vitimadas no trânsito brasileiro, mas com certeza reduzirá bastante o número dos colegas de desatino dos assassinos deles que tenham ou pretendam ter uma CNH no Brasil.
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Sobre o Autor Gilberto Protásio dos Reis, Dr.: http://lattes.cnpq.br/4271140603320731
NOTAS:
[1] Receptação. Art. 180 – Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa. Receptação qualificada. § 1º – Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que deve saber ser produto de crime: Pena – reclusão, de três a oito anos, e multa. § 2º – Equipara-se à atividade comercial, para efeito do parágrafo anterior, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino, inclusive o exercício em residência. § 3º – Adquirir ou receber coisa que, por sua natureza ou pela desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece, deve presumir-se obtida por meio criminoso: Pena – detenção, de um mês a um ano, ou multa, ou ambas as penas. § 4º – A receptação é punível, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor do crime de que proveio a coisa. § 5º – Na hipótese do § 3º, se o criminoso é primário, pode o juiz, tendo em consideração as circunstâncias, deixar de aplicar a pena. Na receptação dolosa aplica-se o disposto no § 2º do art. 155. § 6º Tratando-se de bens do patrimônio da União, de Estado, do Distrito Federal, de Município ou de autarquia, fundação pública, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviços públicos, aplica-se em dobro a pena prevista no caput deste artigo.
[2] Descaminho. Art. 334. Iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria. Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. § 1º Incorre na mesma pena quem: I – pratica navegação de cabotagem, fora dos casos permitidos em lei; II – pratica fato assimilado, em lei especial, a descaminho; III – vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira que introduziu clandestinamente no País ou importou fraudulentamente ou que sabe ser produto de introdução clandestina no território nacional ou de importação fraudulenta por parte de outrem; IV – adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira, desacompanhada de documentação legal ou acompanhada de documentos que sabe serem falsos. § 2º Equipara-se às atividades comerciais, para os efeitos deste artigo, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino de mercadorias estrangeiras, inclusive o exercido em residências. § 3º A pena aplica-se em dobro se o crime de descaminho é praticado em transporte aéreo, marítimo ou fluvial.
[3] Contrabando. Art. 334-A. Importar ou exportar mercadoria proibida: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 ( cinco) anos. § 1º Incorre na mesma pena quem: I – pratica fato assimilado, em lei especial, a contrabando; II – importa ou exporta clandestinamente mercadoria que dependa de registro, análise ou autorização de órgão público competente; III – reinsere no território nacional mercadoria brasileira destinada à exportação; IV – vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria proibida pela lei brasileira; V – adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria proibida pela lei brasileira. § 2º – Equipara-se às atividades comerciais, para os efeitos deste artigo, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino de mercadorias estrangeiras, inclusive o exercido em residências. § 3o A pena aplica-se em dobro se o crime de contrabando é praticado em transporte aéreo, marítimo ou fluvial.
[4] Receptação. Art. 254. Adquirir, receber ou ocultar em proveito próprio ou alheio, coisa proveniente de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte: Pena – reclusão, até cinco anos. Parágrafo único. São aplicáveis os §§ 1º e 2º do art. 240. Receptação culposa. Art. 255. Adquirir ou receber coisa que, por sua natureza ou pela manifesta desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece, deve presumir-se obtida por meio criminoso: Pena – detenção, até um ano. Parágrafo único. Se o agente é primário e o valor da coisa não é superior a um décimo do salário mínimo, o juiz pode deixar de aplicar a pena. Punibilidade da receptação. Art. 256. A receptação é punível ainda que desconhecido ou isento de pena o autor do crime de que proveio a coisa.
[5] Sobre o tema confira em: https://ibsp.org.br/pensamento-socionormativo-da-seguranca-publica/jurisdicao-militar-e-ampliada-pela-lei-federal-13-491-17/ e em RIBEIRO, Ney Rodrigo Lima. As novas competências da “justiça castrense” com o advento da Lei ordinária Federal nº 13.491/2017. In: RIBSP (ISSN 2595-2153), v. 1, n. 1, Jan/Jun 2018, p. 94-8. Disponível em: https://ibsp.org.br/ibsp/revista/index.php/RIBSP/article/view/3/15. Acesso em: 11 jan. 2019. e em SILVA JÚNIOR, Azor Lopes da. Jurisdição militar é ampliada pela Lei Federal 13.491/17. In: RIBSP (ISSN 2595-2153), v. 1, n. 3, Especial (2018), p. 19-20. Disponível em: https://ibsp.org.br/ibsp/revista/index.php/RIBSP/article/view/29/31. Acesso em: 11 jan. 2019.
redação
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Não sou da área judiciária, sou leigo no assunto, mas aprovo toda medida que traga segurança, tranquilidade e disciplina a comunidade! Tudo que possa somar no quesito acima e venha trazer punição aos violadores da ordem pública é muito bem vinda! Também a mesme chega a servir de dissuasão a quem tem intenção de cometer crimes ou atos ilícitos! Parabéns ao autor!