ELEMENTOS PARA O DEBATE “GUARDAS MUNICIPAIS E TEMA 656 DO STF”

No dia 12 de março de 2025, a partir das 19h (horário de Brasília), o Instituto Brasileiro de Segurança Pública promove um debate técnico-científico sobre a tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 656. Para o debate, sob a mediação do Instituto Brasileiro de Segurança Pública (IBSP), foram convidadas a Federação Nacional das Entidades de Oficiais Militares Estaduais (FENEME), a Associação de Oficiais da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar de Santa Catarina, Capitão Osmar Romão da Silva (ACORS), a Associação das Guardas Municipais do Brasil (as duas últimas na condição de amicus curiae na Repercussão Geral nº 656), a Associação dos Oficiais Militares do Estado de São Paulo em Defesa da Polícia Militar (Defenda PM) e a Federação das Entidades Representativas dos Militares do Estado de São Paulo (FERMESP).

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Para qualificar o debate, antecipamos aqui um resgate dos trâmites processuais da questão.

Em 05 de outubro de 2007 o Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, Dr. Rodrigo Cesar Rebello Pinho, ajuizou perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 154.743-0/0-00 em face do disposto no inciso I, do artigo 1º, da Lei nº 13.886, de 01 de julho de 2004, do município de São Paulo, no ponto em que estabelecia: “Art. 1º. A Guarda Civil Metropolitana de São Paulo, principal órgão de execução da política municipal de segurança urbana, de natureza permanente, uniformizada, armada, baseada na hierarquia e disciplina, tem as seguintes atribuições: I – exercer, no âmbito do Município de São Paulo, o policiamento preventivo e comunitário, promovendo a mediação de conflitos e o respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos”.

Ao finalizar sua petição inicial, o Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, Dr. Rodrigo Cesar Rebello Pinho, concluiu: “Em síntese, é entendimento uníssono que a segurança pública é de competência das polícias estaduais, afastada qualquer participação dos Municípios nessa atividade. A eles cabe, apenas, constituir órgão para proteção de seus bens, serviços e instalações”.

Assim, no ano de 2008, o Tribunal de São Paulo declarou inconstitucional a Lei 13.866, de 2004, e, para o relator, Desembargador Maurício Ferreira Leite, o exercício do policiamento somente poderia ser exercido pelas polícias estaduais, “devendo ser repelida qualquer tentativa de alargamento desse horizonte”. Mesmo o voto divergente do Desembargador Ivan Sartori, tão somente frisava que não haveria inconstitucionalidade, se o conceito de policiamento das guardas ficasse restrito à fiscalização de bens e serviços municipais.

Dessa declaração de inconstitucionalidade a Câmara Municipal de São Paulo interpôs o Recurso Extraordinário nº 608.588/SP, inicialmente distribuído em 22 de fevereiro de 2010 ao ministro Eros Grau, que o inadmitiu nos seguintes termos:

“O recurso não merece prosperar. O acórdão recorrido está em consonância com o entendimento do Pleno deste Tribunal, no julgamento da ADI n. 1.182, de minha relatoria, DJ de 10.3.06, onde se fixou que ‘[o] artigo 144 da Constituição de 1.988 dispõe que a segurança pública deve ser exercida através da polícia federal; da polícia rodoviária federal; das polícias civis e das polícias militares e corpos de bombeiros militares […]. Os Estados-membros, assim como o Distrito Federal, devem seguir o modelo federal. O artigo 144 da Constituição aponta os órgãos incumbidos do exercício da segurança pública. Entre eles não está o Departamento de Trânsito. Resta, pois, vedada aos Estados-membros a possibilidade de estender o rol, que esta Corte já firmou ser numerus clausus, para alcançar o Departamento de Trânsito.’ Ademais, o disposto no artigo 144, § 8º, da CB/88, é claro no sentido de que as Guardas municipais, constituídas pelos Municípios, serão destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei, atribuições diversas das atividades típicas de segurança pública exercidas pelos órgãos supra citados. Publique-se. Brasília, 5 de abril de 2010. Ministro Eros Grau – Relator” (grifos no original).

Insistindo, a Câmara Municipal, no recurso e, com a aposentadoria do ministro Eros Grau, o processo tornou ao seu substituto, ministro Luiz Fux, que em 17 de abril de 2013, despachou: “[…] São relevantes as alegações dos agravantes, razão por que reconsidero a decisão impugnada. Determino, em consequência, a reautuação do processo como recurso extraordinário, vindo, após, à conclusão.” e, em 24 de maio de 2013, decidiu: “O Tribunal, por unanimidade, reputou constitucional a questão. O Tribunal, por unanimidade, reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada“. Iniciava-se o um Leading Case que daria origem ao Tema 656.

No curso da ação, foram admitidos como Amicus Curiae: Associação de Oficiais Da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar de Santa Catarina “Capitão Osmar Romão Da Silva”, o Sindicato dos Guardas Civis Metropolitanos de São Paulo, a Associação Brasileira dos Guardas Municipais, a Associação Nacional de Altos Estudos de Guarda Municipal, a Associação Nacional de Guardas Municipais Do Brasil, o Sindicato dos Servidores da Guarda Municipal de Curitiba, o Sindicato dos Agentes Municipais de Segurança Pública do Estado do Ceara, o Sindicato dos Servidores Públicos Municipais das Prefeituras, Câmaras Municipais, Autarquias e Fundações dos Municípios da Microrregião de Sete Lagoas/MG, a Associação dos Guardas e Servidores do Estado de São Paulo, o Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias Públicas Estaduais e Distrital nos Tribunais Superiores e a Federação Nacional de Sindicatos de Servidores das Guardas Municipais.

Finalmente, ainda que sem o trânsito em julgado do Leading Case, no dia 25 de fevereiro de 2025, o Pleno do Supremo Tribunal Federal assim pôs a questão a termo, fixando como a seguinte tese (com efeito vinculante, na forma dos artigos 927 e 928 do Código de Processo Civil), publicada em 05 de março de 2025:

É constitucional, no âmbito dos municípios, o exercício de ações de segurança urbana pelas Guardas Municipais, inclusive policiamento ostensivo e comunitário, respeitadas as atribuições dos demais órgãos de segurança pública previstos no art. 144 da Constituição Federal e excluída qualquer atividade de polícia judiciária, sendo submetidas ao controle externo da atividade policial pelo Ministério Público, nos termos do artigo 129, inciso VII, da CF. Conforme o art. 144, § 8º, da Constituição Federal, as leis municipais devem observar as normas gerais fixadas pelo Congresso Nacional“.

Da obra Gargalos da Segurança Pública no Brasil (SILVA JÚNIOR, Azor Lopes da. Editora HN, 2022), tomamos alguns elementos que podem balizar a reflexão sobre o tema:

Mesmo sem previsão constitucional, alguns prefeitos municipais brasileiros, eleitos no período da abertura política da década de 1980 criaram as primeiras “novas” guardas municipais em Santos-SP (1985), Curitiba-PR (1985), São Paulo (1986) e São José dos Campos-SP (1988). Dessa realidade histórica, somada à força dos grupos de pressão da Frente Municipalista, representada pelo Instinto Brasileiro de Administração Municipal, a Associação Brasileira de Municípios e Confederação Nacional dos Municípios, sobre os constituintes (1986-1988), que rompeu com a tradição constitucional para formar uma federação trina (HORTA, 1995; SANTANA, 1993; FERRARI, 1993 apud PIRES, 2005), onde as guardas municipais se institucionalizariam com status constitucional.

Os dados trazidos a partir de nossa revisão documental desde os anais da Assembleia Nacional Constituinte (1986-1988), evidenciaram que Anteprojeto Constitucional produzido pela “Comissão Afonso Arinos” havia incorporado a proposta de que os municípios com mais de duzentos mil habitantes – e não outros – poderiam criar e manter guardas municipais próprias, contudo figurando como órgão auxiliar das polícias civis.  A ligação dessas guardas municipais com as polícias civis estaduais se sustentava na predominância dos interesses estaduais no trato da preservação da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Não se apresentava, assim, uma tese de municipalização da segurança, mas se submetia um órgão do poder público municipal (guardas municipais) à subordinação de outro do poder estadual (polícias civis). Nos debates constitucionais que se sucederam, isso ficou evidente no discurso do então Presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil, Cyro Vidal, defendeu a inexistência de limites populacionais para a criação das guardas e o que paradoxalmente chamava de “subordinação da atividade da guarda municipal, não a guarda municipal em si”. O que chamamos de proposta paradoxal, de Cyro Vidal, apoiado pelo constituinte José Tavares, explicava que as guardas municipais deveriam ter autonomia no manejo dos códigos de posturas municipais, todavia deveriam estar subordinadas às polícias civis, quando atuassem em atividades típicas de polícia estadual.

O marco  populacional de 200 mil habitantes ainda seria reafirmado como argumento nos debates constituintes, na forma de um mecanismo capaz de evitar que as guardas municipais pudessem se transformar em instrumentos de pressão política a serviço de prefeitos; esse temor era reforçado pelos discursos do constituinte Roberto Brant, que chamou a proposta de criação de guardas como um “pesadelo”, entendia não estarem ainda as sociedades suficientemente desenvolvidas nos pequenos municípios. Mesmo assim, na condição de relator, apresentou substitutivo acatando a retirada da barreira populacional para criação das guardas, mas limitando sua atuação à vigilância do patrimônio municipal. Roberto Brant chegou a dizer que “a criação indiscriminada dessas guardas vai ser nefanda, nefasta; terrivelmente grave, um dos momentos mais graves deste processo constituinte. […] Não quero ser responsável pelas consequências quando disserem: V. Ex.ª foi Constituinte de 1987” (BRASIL. 1987, p. 226).

Outros constituintes como César Maia, Aloysio Chaves que eram contrários à criação das guardas se somavam à Ricardo Fiúza que atacou a proposta trazendo como argumento: “é realmente um absurdo, e o objetivo de botar na Constituição foi realmente esvaziar, porque senão nós vamos criar uma nova força policial sem disciplina, sem hierarquia, sem preparo, sem coisa nenhuma. […], é um país de fato consumado, criaram esse monstro”. Também o constituinte Prisco Viana, na relatoria da “Comissão da Organização eleitoral, partidária e garantia das instituições”, se não atacava gravemente as propostas de criação das guardas municipais, deslocava topograficamente sua posição de dentro dos órgãos de segurança pública para o capítulo que naquele texto cuidada das competências dos municípios.

Vencidos os debates nas subcomissões e comissões, na Comissão de Sistematização o constituinte Ibsen Pinheiro se somou aos que sustentavam que, uma vez admitida a criação das guardas, jamais se confundissem como integrantes do sistema de segurança, mas ficassem limitadas à proteção das instalações e dos serviços municipais, o que foi acatado pelo relator Adolfo Oliveira e pelo presidente, o então constituinte Fernando Henrique Cardoso. Promulgada a Constituição Federal as guardas municipais passaram a ser uma realidade e seus esforços lhes asseguraram um espaço constitucional dentre os órgãos do sistema de segurança pública, porém não dotados de police power, tal qual nos modelos sul europeus e norte-americanos apresentados em nossa pesquisa e sul-americanos referidos.

Ainda assim, as propostas de municipalização da segurança pública e de criação de polícias municipais continuam, como é o caso da PEC 534-A/2002 (“PEC das Guardas Municipais”) e aquelas que lhe foram apensadas, nas mais variadas formas, todas na linha municipalista, desde as que atribuem às Guardas Municipais funções de polícia ostensiva e de preservação da ordem, àquelas que lhe agregam atribuição de polícia judiciária e, finalmente, as que passam polícias civis e polícias militares à subordinação dos chefes de Executivo Municipal.

[…]

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), trazidos pela Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC 2012)[1], revelam que no período de 2006 a 2012 houve, observado o número global do país, um pequeno aumento no número de municípios que mantém guardas municipais (2,3%), que aconteceu em todas as classes de municípios divididos por faixas de densidade demográfica, exceto naqueles com mais de 500 mil habitantes, onde houve uma redução de 3,3%.

[…]

Até 2012 essas guardas estavam distribuídas no país conforme se vê no Gráfico 3. Observa-se que Rio de Janeiro e Amazonas despontavam à frente com respectivamente 80,4% e 62,9% de seus municípios com Guardas Municipais. O Rio de Janeiro tem uma população estimada pelo IBGE em 2013 de 16.369.179 habitantes em seus 92 municípios; Amazonas tem uma população de 3.807.921 habitantes em seus 62 municípios; mesmo não atingindo o mesmo nível percentual de municípios com Guarda Municipal instalada, é interessante perceber que no Estado de Roraima esse número saltou de 6,7% em 2006 para 20% em 2012 (Gráfico 3). Os dados mais recentes publicados pelo IBGE dão conta que “de 2009 para 2019, aumentou o número dessas corporações nos Municípios, cujo percentual passou de 15,5% para 21,3%. Entre os Estados onde isso ocorreu mais significativamente, pode-se citar, Amazonas, Maranhão, Ceará, Pernambuco, Alagoas e Rio de Janeiro”[2].

A questão que se coloca é: o que leva esses Estados a terem investido na criação de Guardas Municipais? A hipótese mais provável é a da precariedade de investimentos do Estado no aparelhamento de suas polícias militares, especialmente no que diz respeito ao efetivo.

[…]

Esses elementos de análise levam a entender o porquê de as Guardas Municipais estarem crescendo não só em quantidade, mas também na expansão de seu mandato constitucional, como órgãos incumbidos da proteção do patrimônio e serviços públicos municipais, para funções de natureza policial no policiamento ostensivo, em regra sob moldes de formação, liderança e ação paramilitares, ocupando o papel das polícias militares não tão adequadamente presentes em todos os municípios, […].

Entretanto, um fator preocupante é que a maioria dessas novas corporações municipais tem remuneração mensal que não supera 3 salários mínimos (Gráfico 6), o que permite inferir que a seleção de seus integrantes seja prejudicada sob o aspecto da qualificação e o seu trabalho seja considerada de baixa renda (BRUSKY; FORTUNA, 2002), mesmo comparado com os salários de policiais militares da base hierárquica que em 2011 tinham salários que variavam nos Estados da federação entre R$1.679,32 (equivalente a 3,08 salários mínimos) a R$ 4.007,14 (equivalente a 7,35 salários mínimos)[3], segundo dados do Ministério da Justiça (BRASIL, 2013c, p. 15).

[…]

Além de possuírem a menor capacidade de captação de recursos a partir de receitas tributárias próprias, os municípios já têm grande parte de sua receita vinculada à saúde[4] e educação[5], o que reduz seu nível de autonomia orçamentária. Quando, no exercício de sua autonomia, o município assume encargos de gasto com pessoal, previdência e infraestrutura de uma Guarda Municipal ele compromete sua receita em algo que não lhe caberia despender verbas; os repasses do FNSP não se prestam senão a programas pontuais, que dependem de prévia aprovação dos respectivos projetos, depois de cumpridas todas as exigências burocráticas e desde que haja recursos orçamentários disponíveis no Ministério da Justiça. Além de aumentar sua dependência em relação ao governo federal o município compromete seu orçamento ao longo do tempo, especialmente em razão dos futuros gastos com a previdência.

Prof. Dr. Azor Lopes da Silva Júnior
Presidente do Instituto Brasileiro de Segurança Pública

Notas:

[1] Sobre financiamento da saúde pública por receitas vinculadas tomamos o trabalho de Lima & Andrade (2009).

[2] CF/1988, Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.

[3] O Ministério da Justiça (BRASIL, 2013c, p.15) não apresenta valores salariais dos policiais militares em equivalência a salários-mínimos; o cálculo da relação entre os valores absolutos apresentados foi convertido pelo autor a partir do valor fixado como salário-mínimo em 2011 (“Lei nº 12.382, de 25 de fevereiro de 2011: “Art. 1º O salário mínimo passa a corresponder ao valor de R$ 545,00 (quinhentos e quarenta e cinco reais).”).

[4] Perfil dos municípios brasileiros: 2019/IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. – Rio de Janeiro: IBGE, 2020.

[5] Esse ponto não foi abordado na pesquisa do IBGE “MUNIC 2020”

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