Decreto nº 12.341, de 2024: muito ruído, mas nada de novo…

Tem gerado grande repercussão na mídia e nas redes sociais a edição do Decreto nº 12.341, de 23 de dezembro de 2024, que regulamenta a Lei nº 13.060, de 22 de dezembro de 2014 para disciplinar “o uso da força e dos instrumentos de menor potencial ofensivo pelos profissionais de segurança pública, com vistas a promover eficiência, transparência, valorização dos profissionais de segurança pública e respeito aos direitos humanos” e, com base na competência privativa da União posta pelo Estatuto do Desarmamento, classificar os “instrumentos de menor potencial ofensivo”.

Com a edição do decreto, vieram desde críticas à terminologia empregada (“instrumentos de menor potencial ofensivo“; “forma diferenciada” de emprego da força) e até de invasão da União no campo de autonomia dos Estados, mas os críticos talvez não tenham percebido que fora a Lei nº 13.060, de 22 de dezembro de 2014, promulgada há mais de uma década e até então não regulamentada pelo Poder Executivo Federal, que previu já em seu artigo primeiro que ela “disciplina o uso dos instrumentos de menor potencial ofensivo pelos agentes de segurança pública em todo o território nacional“; e veja-se que passados 10 anos, até hoje sua inconstitucionalidade não foi sequer suscitada (talvez porque não seja o caso)…

Na página do Governo Federal a explicação dada pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, com relação ao Decreto nº 12.341, veio nos seguintes termos:

“Dentro do Estado Democrático de Direito, a força letal não pode ser a primeira reação das polícias. É preciso que se implante de forma racional, consciente e sistemática o uso progressivo da força. Só podemos usar a força letal em última instância. É preciso que a abordagem policial se dê sem qualquer discriminação contra o cidadão brasileiro, se inicie pelo diálogo e, se for necessário, o uso de algemas dentro dos regulamentos que existem quanto a esse instrumento de contenção das pessoas, evoluindo eventualmente para o uso de armas não letais, instrumentos não letais que não provoquem lesões corporais permanentes nas pessoas”.

Ao Instituto Brasileiro de Segurança Pública (IBSP), criado com personalidade jurídica como uma organização da sociedade civil de âmbito nacional e apartidária, com objetivo dentre outros de “promover a ética, a paz, a cidadania, os direitos humanos, a democracia e outros valores universais, a partir da difusão do conhecimento científico produzido“, cabe a todo tempo se policiar para não se desviar seus postulados estatutários de rigor científico, da isenção ideológica e da liberdade intelectual; em tempos de proliferação de ideias pelas redes sociais e por aplicativos de mensagens instantâneas, são exatamente esses dois primeiros valores (rigor científico e isenção ideológica) que limitam o terceiro (liberdade intelectual), porém sem suprimi-lo ao sabor da inconcebível censura proscrita pela Constituição da República (Art. 5º. IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; Art. 220. § 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.) e, sim, dentro do conceito de autorregulação, de que bem cuidou o pesquisador Camilo Vannuchi (2018).

A partir e dentro desses postulados, pode-se levantar uma dúvida razoável sobre o porquê de uma lei promulgada em 22 de dezembro de 2014 (Lei nº 13.060) somente venha a ser regulamentada em 23 de dezembro de 2024, a partir do problema gerado pela recente repercussão de episódios de excesso por agentes de segurança pública, e se levantar como hipótese a histórica baixa preocupação do Governo Federal brasileiro na definição de políticas públicas no campo da segurança.

Veja-se com atenção que o Decreto nº 12.341 simplesmente baixa orientações no sentido de que o uso da força e de instrumentos de menor potencial ofensivo somente poderá ocorrer para a consecução de um objetivo legal e nos estritos limites da lei, que as operações e as ações de aplicação da lei devem ser planejadas e executadas mediante a adoção de todas as medidas necessárias para prevenir ou minimizar o uso da força e para mitigar a gravidade de qualquer dano direto ou indireto que possa ser causado a quaisquer pessoas, que um recurso de força somente poderá ser empregado quando outros recursos de menor intensidade não forem suficientes para atingir os objetivos legais pretendidos, que o nível da força utilizado deve ser compatível com a gravidade da ameaça apresentada pela conduta das pessoas envolvidas e os objetivos legítimos da ação do profissional de segurança pública, que a força deve ser empregada com bom senso, prudência e equilíbrio, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, com vistas a atingir um objetivo legítimo da aplicação da lei, que os órgãos e os profissionais de segurança pública devem assumir a responsabilidade pelo uso inadequado da força, após a conclusão de processo de investigação, respeitado o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório e que os profissionais de segurança pública devem atuar de forma não discriminatória, sem preconceitos de raça, etnia, cor, gênero, orientação sexual, idioma, religião, nacionalidade, origem social, deficiência, situação econômica, opinião política ou de outra natureza.

Diz mais o Decreto nº 12.341: “Art. 3º  A força deverá ser utilizada de forma diferenciada, com a seleção apropriada do nível a ser empregado, em resposta a uma ameaça real ou potencial, com vistas a minimizar o uso de meios que possam causar ofensas, ferimentos ou mortes. § 1º  Os profissionais de segurança pública deverão priorizar a comunicação, a negociação e o emprego de técnicas que impeçam uma escalada da violência. § 2º  O emprego de arma de fogo será medida de último recurso. § 3º  Não é legítimo o uso de arma de fogo contra: I – pessoa em fuga que esteja desarmada ou que não represente risco imediato de morte ou de lesão aos profissionais de segurança pública ou a terceiros; e II – veículo que desrespeite bloqueio policial em via pública, exceto quando o ato represente risco de morte ou lesão aos profissionais de segurança pública ou a terceiros. § 4º  O emprego de arma de fogo ou de instrumento de menor potencial ofensivo deverá ser restrito aos profissionais devidamente habilitados para sua utilização. § 5º  Sempre que o uso da força resultar em ferimento ou morte, deverá ser elaborado relatório circunstanciado, segundo os parâmetros estabelecidos em ato do Ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública“.

Agora perceba-se que tais orientações nada avançam para além do que já era previsto no antigo Código Penal de 1940 (“Art. 23 – Não há crime quando o agente pratica o fato:  I – em estado de necessidade; II – em legítima defesa; III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. Parágrafo único – O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.“) e no Código de Processo Penal de 1941 (“Art. 284.  Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso“).

Se de um lado o Governo Federal nada inova com o Decreto nº 12.341, de outra banda ele delega ao Ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública atribuição para instituir um Comitê Nacional de Monitoramento do Uso da Força (CNMUDF) e se compromete a financiar, conforme a disponibilidade orçamentária, condicionando o repasse de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública e do Fundo Penitenciário Nacional os Estados, do Distrito Federal e dos Municípios à ações que se destinem a implementar ações para o fiel cumprimento da lei e do próprio decreto (Art. 5º, I, e Art. 9º), o que pode até soar como chantagem orçamentária, mas é algo que está dentro da autonomia da União.

O Governo Federal parece querer deixar uma imagem de protagonismo inovador que não existe, afinal, além do controle externo da atividade policial a cargo do Ministério Público, todas as agências policiais do país já de há muito dispõem de protocolos próprios (Procedimentos Operacionais Padrão – POP) para o uso da força, além de órgãos de correição internos com firme atuação nos episódios de desvios de conduta por seus integrantes.

O mais não passa de discurso, que jamais chega ao patamar do campo de pesquisa científica dirigida à orientação de consistentes políticas públicas.

São José do Rio Preto (SP), 27 de dezembro de 2024.

Prof. Dr. Azor Lopes da Silva Júnior
Presidente do Instituto Brasileiro de Segurança Pública
http://lattes.cnpq.br/6088271460892546
https://orcid.org/0000-0002-6340-6636

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1 comentário em “Decreto nº 12.341, de 2024: muito ruído, mas nada de novo…”

  1. O policial militar hoje e o prestador de serviço público mais preparado e ao mesmo tempo o mais cobrado, vigiado, fiscalizado e execrado. Tem formação apropriada, tem conhecimento jurídico, tem fiscalização da própria instituição, do Ministério Público e da própria sociedade por meio das câmeras, e tem também a saga do Governo Federal em eliminá-lo porque é militar.

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