Azor Lopes da Silva Júnior, Dr. (1)
“Habeas Corpus. Pedido de nulidade da decisão que permitiu o acesso aos dados do celular do paciente por ausência de fundamentação. Ocorrência. Decisão que se limitou a deferir o pedido de quebra de sigilo dos dados e da comunicação do celular apreendido, sem que dela conste a devida fundamentação. Ofensa ao artigo 93, IX, da CF. Violação da intimidade caracterizada. Constrangimento ilegal verificado. Nulidade reconhecida. Ordem concedida”. (TJSP. Habeas Corpus n. 2000533-61.2019.8.26.0000. 16ª Câmara Criminal. Relator: Desembargador LEME GARCIA. Comarca: BARRETOS. Impetrante: DIOGO DE PAULA PAPEL. Julgado em 15 de fevereiro de 2019).
(Confira a íntegra do Acórdão: TJSP-HC 2000533-61.2019.8.26.0000_WhatsApp prova ilícita
“No caso concreto, a visualização das conversas mantidas por meio do aplicativo de mensagens, sem a autorização judicial por onde, inclusive, os militares viabilizaram o flagrante preparado, como exposto acima, constitui flagrante ilegalidade. Certo é que, reconhecida, como foi, a ilegalidade do flagrante e ainda, os indícios de materialidade amelhados em desfavor dos apelantes obtidos através do acesso ilegal ao aparelho celular, necessário se faz a nulificação de todos os atos subsequentes que provêm daquele, considerado meio ilícito, aplicando-se, portanto, a doutrina dos frutos da árvore envenenada […]” (TJMG. Apelação Criminal Nº 1.0042.17.002098-8/001. 5ª Câmara Criminal. Relator: Desembargador ALEXANDRE VICTOR DE CARVALHO).
(Confira a íntegra do Acórdão: TJMG-APELAÇÃO CRIMINAL 1.0042.17.002098-8-001_WhatsApp prova ilícita )
Neste mês de fevereiro (2019), não só a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, mas também a do Tribunal de Justiça de Minas Gerais ganharam destaque, porque em ambas as Cortes consideraram ilícitas todas as provas obtidas (e também as delas derivadas) a partir de (1) acesso ao conteúdo de mensagens pelo aplicativo WhatsApp sem autorização judicial (caso mineiro) ou (2) autorização judicial de acesso ao conteúdo de mensagens pelo aplicativo WhatsApp sem a devida fundamentação (caso paulista).
“Fruits of the poisonous tree” ou “frutos da árvore venenosa [ou envenenada]” (2) é uma teoria originária do direito norte-americano a partir do caso “Siverthorne Lumber Co. vs. United States”(Disponível em: https://caselaw.findlaw.com/us-supreme-court/251/385.html ), em que a questão central fora a admissibilidade ou não das chamadas provas ilícitas por derivação; veja-se que, em matéria de direitos fundamentais, os Estados Unidos mostram um aparente paradoxo porque, ao mesmo tempo em que adotam o primado do pragmatismo (v.g. a “Plea bargain” ou “Plea bargaining“, forma de confissão de culpa mediante contrapartida de mitigação de pena), também se mostram extremamente avessos à violação de determinadas formas e fórmulas legais, levando processos criminais à absoluta anulação, mesmo em casos em que restam presentes as evidências do crime imputado.
Dentro do tema, merece distinguir (1) “prova ilícita”, (2) “prova obtida por meio ilícito” e, por fim, (3) “prova ilícita por derivação”:
(1) “Prova ilícita” é aquela cuja própria natureza intrínseca a torna inadmissível de ser usada num processo. O Código de Processo Civil aponta serem ilícitas as provas que violarem a moral (“Art. 369. As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz.”); semelhantemente o Código de Processo Penal (“Art. 7o Para verificar a possibilidade de haver a infração sido praticada de determinado modo, a autoridade policial poderá proceder à reprodução simulada dos fatos, desde que esta não contrarie a moralidade ou a ordem pública.“).
(2) “Prova obtida por meio ilícito“, por sua vez, é aquela que em si não seria ilegal, mas a forma como foi obtida é que a torna inadmissível no processo; v.g. o diálogo telefônico entre criminosos que confessam crimes poderia ser prova lícita, desde que sua interceptação fosse previamente autorizada pela autoridade judiciária competente, porém, não o sendo, essa prova é imprestável ao processo, porque, mesmo sem ter sido manipulada, fora obtida por meio ilícito, tal e qual depoimentos verdadeiros, porém colhidos mediante tortura.
(3) Finalmente, “Prova ilícita por derivação” é aquela cuja ilicitude é mero reflexo, contaminação, porque a que lhe antecedeu ou lhe apontou fora ilícita ou obtida por meio ilícito, ferindo-a mortalmente.
Com as alterações trazidas pela Lei nº 11.690, de 2008, o Código de Processo Penal brasileiro define claramente cada uma delas, relativizando de forma um tanto quanto confusa (é nosso pensamento…), o conceito de ilicitude da prova por derivação, a partir da ideia de possibilidade de sua obtenção por via alternativa independente (“trâmites típicos e de praxe”…) daquela claramente ilícita:
Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.
1º. São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.
§ 2º. Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova.
Veja-se a norma constitucional:
“São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 5º, X);
“É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal” (Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 5º, XII);
“São inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos” (Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 5º, LVI);
“Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade” (Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 93, IX).
Em caso julgado em 2018, sob a relatoria da Ministra LAURITA VAZ (Habeas Corpus nº 454.228-SC), a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça invalidou todas as provas obtidas a partir do chamado “espelhamento” do aplicativo de mensagens WhatsApp (via WhatsApp Web), técnica então utilizada pela polícia para obter provas numa investigação sobre narcotraficância; assentou a Ministra, no que foi seguida por seus pares:
“Cumpre assinalar, portanto, que o caso dos autos difere da situação, com legalidade amplamente reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça, em que, a exemplo de conversas mantidas por e-mail, ocorre autorização judicial para a obtenção, sem espelhamento, de conversas já registradas no aplicativo WhatsApp, com o propósito de periciar seu conteúdo.”
“Ao contrário da interceptação telefônica, que é operacionalizada sem a necessidade simultânea de busca pessoal ou domiciliar para apreensão de aparelho telefônico, o espelhamento via QR Code depende da abordagem do indivíduo ou do vasculhamento de sua residência, com apreensão de seu aparelho telefônico por breve período de tempo e posterior devolução desacompanhada de qualquer menção, por parte da autoridade policial, à realização da medida constritiva, ou mesmo, porventura – embora não haja nos autos notícia de que isso tenha ocorrido no caso concreto –, acompanhada de afirmação falsa de que nada foi feito.”
Ora, a norma constitucional é clara, daí porque os tribunais vem repudiando devassas aos dados existentes nos aplicativos integrados aos aparelhos de telefonia móvel (“Smartphones“) e invalidando sua utilização nos processos, seja sob o apanágio do respeito à privacidade e intimidade, seja quando isso for superado pela via judicial, porém sem a devida fundamentação que lhe legitime; por mais que isso pareça ir de encontro ao desejo de justiça e ao clamor público que cada vez mais ecoa pelas redes sociais e Blogs, a concepção republicana do “Devido Processo Legal”, num verdadeiro Estado Democrático de Direito, impõe que as autoridades e órgãos do Estado evoluam para além de suas históricas deficiências e atinjam o exigível padrão de eficiência que os façam capazes de superar a ação dos criminosos e de suas organizações dentro das “regras do jogo” e não com repentes de autoritarismo. Outro caminho não dará aos profissionais das agências de segurança pública o respeito e a legitimidade que merecem…
Noutras palavras, se o crime pôde se organizar ao longo da história, também o Estado poderá fazê-lo… e é de se esperar que o faça mais brevemente e com maior qualidade…
Notas:
(1) É doutor em Sociologia (UNESP), mestre em Direito (UNIFRAN), Especialista (UNESP, UFPR e PUC-RS) e graduado em Direito e em Segurança Pública. É Coronel da Reserva da PMESP, Advogado e Professor de Direito Constitucional e Processual Penal. É fundador e atual Presidente do Instituto Brasileiro de Segurança Pública. http://lattes.cnpq.br/6088271460892546 – https://orcid.org/0000-0002-6340-6636 .
(2) LawTeacher. November 2013. FRUIT OF THE POISONOUS TREE: An analysis. [online]. Available from: https://www.lawteacher.net/free-law-essays/constitutional-law/law-of-evidence-the-fruit-of-the-poisonous-tree-law-essays.php?vref=1 [Accessed 18 February 2019].
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