O que esperar do novo Governo Federal no campo segurança pública?

Dequex Araujo Silva Junior, Doutor em Ciências Sociais.

É Diretor do IBSP no Estado da Bahia

Mal assumiu governo da federação, o presidente Jair Bolsonaro já se deparou com a violência terrorista implantada por facções criminosas acostumadas com as benesses dadas pelo Estado, que garante, por meio da política criminal, certos privilégios para quem comete crime. A situação no Ceará não é um caso isolado. As ações terroristas desencadeadas pelas facções criminosas no Brasil se iniciaram, se a memória não me falha[1], em São Paulo, durante ataques simultâneos coordenados pelo PCC, em maio de 2006. De lá para cá há vários registros de situações semelhantes em outras unidades da federação.

A forma sentimental (ou sentimentaloide) como são tratados os infratores da lei no Brasil é expressiva e notoriamente movida por crenças ideológicas, que enxergam o bandido como vítima da sociedade ou de um sistema econômico injusto como disse uma certa vez, em uma entrevista, a“filósofa” Márcia Tiburi[2], afirmando que é a favor do assalto, pois há uma lógica nele pela contaminação do capitalismo, onde é justo subtrair de outrem um bem de forma violenta dentro de um contexto extremamente injusto. No âmbito acadêmico, grosso modo, essa visão romântica do criminoso como vítima social é muito comum. As pesquisas realizadas no campo da segurança pública pelos denominados especialistas, registradas em livros e artigos, colocam geralmente a responsabilidade pelo aumento da criminalidade na estrutura socioeconômica, nas políticas de segurança pública e, mais categoricamente, nas organizações policiais, acusando-as de violentas e despreparadas. Esses mesmos especialistas oferecem comumente, como solução para o problema de insegurança pública, o desarmamento da população, a descriminalização das drogas, o desencarceramento, a desmilitarização das Polícias Militares, a descriminalização de certos tipos penais e outros benefícios e estimulantes para a prática de crime.

Na mídia também não é difícil encontrarmos jornalistas sensivelmente afetados com a possibilidade do uso mais enérgico da força para dissuadir os bandidos no cometimento de crimes. O caso mais recente foi a preocupação da entrevistadora da Globo News com a declaração do governador eleito do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, quando afirmou em entrevista que iria utilizar “snipers” para abater bandidos portando fuzis nas favelas cariocas. Pedro Bial, ao entrevistar o General Heleno, também externou a mesma apreensão[3]. Para eles, que paradoxalmente são favoráveis ao desarmamento da população, uma pessoa de fuzil, que não está autorizada a usá-lo, aparentemente não oferece perigo para a sociedade. Sobre essa questão da possibilidade do uso de arma de fogo por parte do policial para coibir uma ameaça iminente, ressalta-se que tal utilização é previsto pelo Código de Conduta para os Encarregados da Aplicação da Lei (CCEAL) [4]: “Os encarregados da aplicação da lei não usarão armas de fogo contra indivíduos exceto: em casos de legitima defesa ou defesa de outrem contra ameaça iminente de morte ou ferimento grave; para impedir a perpetração de crime particularmente grave que envolva séria ameaça à vida; ou efetuar a prisão de alguém que represente tal risco e resista à autoridade, ou para impedir a fuga de alguém que represente tal risco”.

Não obstante essa forma romântica, porque não dizer gnóstica, da maioria dos nossos acadêmicos e jornalistas com relação ao criminoso, não há dúvidas, pelos menos para mim e alguns estudiosos da área, que o principal estimulante para a atuação criminosa e também contribuinte para a elevação da criminalidade é a própria política criminal adotada no país. A política jurídica e penal brasileira é “bandidólatra” e “democída”, dizem os promotores públicos Diego Pessi e Leonardo Giardin de Souza, na obra “Bandidolatria e Democídio: Ensaios sobre o garantismo penal e a criminalidade no Brasil[5]. A “bandidolatria” seria a transformação no âmbito penal e jurídico do bandido em vítima social; o democídio, por seu turno, surgiria quando o governo, que tem como função vital proteger a vida dos cidadãos, passasse a ser o principal responsável pelo assassinato da população, sendo os casos mais conhecidos o genocídio[6] e assassinato em massa.

Em um relatório publicado no mês de junho de 2018, intitulado Atlas da Violência 2018, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), foi constatado um total de 62.517 homicídios, em 2016 no Brasil, equivalendo uma taxa de 30,3 homicídios por 100 habitantes. Nos últimos dez anos (2006-2016), 553 mil pessoas foram assassinadas, tendo os anos de 2006 e 2007 apresentados o menores números com, respectivamente, 49.704 e 48.219 homicídios, e os anos de 2014 e 2016 os maiores com, respectivamente, 60.474 e 62.517 homicídios. Não há prova mais irrefutável de que o Estado brasileiro é “democída” e que tem como fulcro a política penal “bandidólatra”, que por sua vez é sustentada no garantismo penal como já está explicito no subtítulo da obra dos promotores acima citados.

O garantismo penal[7] é a aplicação do direito alternativo dentro da esfera penal, segundo Gilberto Callado de Oliveira[8], Promotor de Justiça e autor de duas importantes obras sobre o tema. Na obra “A verdadeira face do direito alternativo”, onde faz um minucioso estudo sobre a origem do direito alternativo e do garantismo penal, o autor diz que o “alternativismo jurídico” foi gestado na Itália por Luigi Ferrajoli, jurista adepto ao materialismo jurídico marxista. O autor afirma que “o direito alternativo se fez, em ponto menor, direito garantista, porque entrou no interior do direito penal e do direito processual penal, para ir se irradiando a outros ramos do direito. Há uma depuração instrumental no arco ideológico que vai do alternativo ao garantismo”, onde se buscou, “na verdade, dentro do processo revolucionário, dar relevo ao uso alternativo do direito pela via garantista”. O garantismo penal, ressalta o Promotor de Justiça, “retoma o mote igualitário da luta político-ideológica do alternativismo, a partir dos mesmos pressupostos marxistas, anuncia a natureza política do direito penal e de seu instrumento processual, com o intuito de favorecer aos interesses do polo insurgente da luta de classes, personificado pelos juristas comprometidos com o novo paradigma constitucional democrático e pelos oprimidos, que são os titulares dos direitos constitucionais insatisfeitos”.

Objetivamente, o garantismo penal trouxe para o sistema punitivo, conforme Oliveira, na obra “Garantismo e barbárie: a face oculta do garantismo penal” três gravíssimas rupturas à finalidade da pena: a primeira afeta a Justiça Legal, quando não há o convencimento do Estado de que a pena é necessária para os fins propostos, ou seja, questiona-se a própria necessidade e a justiça na aplicação da pena; a segunda diz respeito ao questionamento à exemplaridade da pena, ou seja, “quando a intimidação da violência punitiva não se faz tardar, quando o modelo de justiça praticado na sociedade é resultado de uma convicção inabalável dos indivíduos de que respeitar a lei é fator de segurança, uma vantagem sobre o castigo que possam sofrer os delinquentes; a terceira ruptura é a negação dos “meios profiláticos da punição para fins regenerativo”, que se constitui na base da crença dos minimalistas e abolicionistas penais.

Esse brevíssimo relato demonstra o grau de dificuldade que o novo governo, mais especificamente o ministro da Justiça e da Segurança Pública, o ex-juiz Sérgio Moro, terá para reverter a situação calamitosa criada nos campos da ordem e segurança públicas pelos agentes da revolução gramsciana que gravitam no Legislativo, Judiciário e Ministério Público. Ou seja, a questão das políticas de segurança pública está muito além do melhoramento do aparato policial, pois incide diretamente no sistema de justiça criminal como todo, que ora apresenta características “bandidólatra” e “democida”. É a inversão desse processo que acarretará a inviabilidade de fatos como o que está ocorrendo hoje não somente no Ceará, mas nas demais unidades da federação. A organização do crime no país é efeito da política criminal gnóstica, que considera o universo socioeconômico mau, cria de um demiurgo maligno, onde aquele que se desvia das normas sociais não possui qualquer responsabilidade pela sua má conduta, pois é vítima da maldade do sistema.

NOTAS

[1] E não falha; confira em CRUZ, Elaine Patrícia. Crimes de maio causaram 564 mortes em 2006; entenda o caso. Brasília: Agência Brasil, 12 maio 2016.  Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2016-05/crimes-de-maio-causaram-564-mortes-em-2006-entenda-o-caso. Acesso em: 13 jan. 2019. E também em: ADORNO, Sérgio; SALLA, Fernando. Criminalidade organizada nas prisões e os ataques do PCC. Estud. av.,  São Paulo ,  v. 21, n. 61, p. 7-29,  Dec.  2007 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142007000300002&lng=en&nrm=iso>. access on  13  Jan.  2019.  http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142007000300002.

[2] As conclusões ilógicas sobre a lógica da autora levam-na a afirmar que “No crime de roubo, a ode ao capitalismo e à correlata supremacia do “ter” sobre o “ser” – não é difícil perceber – encontra-se tanto na ação do assaltante que pretende aumentar seu patrimônio às custas da diminuição do patrimônio alheio, como na postura do legislador que prioriza um bem material em detrimento da vida ou dos órgão encarregados da persecução penal que, na defesa do patrimônio, produzem mortes, não só dos envolvidos na situação conflituosa (autor e, por vezes, também a vítima) como de terceiros alcançados por “balas perdidas”. Para se entender a lógica do assalto, não basta, portanto, ouvir o medo estimulado para produzir efeitos políticos sobre a classe média que não dispõe de segurança privada, mas também aquilo que Raúl Zaffaroni chamou de a “palavra dos mortos”.”. Disponível em https://revistacult.uol.com.br/home/logica-do-assalto/. Acesso em: 13 jan. 2019.

[3] Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/7229871/

[4] O CCEAL foi adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em sua resolução de 34/169, de 17 de dezembro de 1979.

[5] Os primeiro a tratarem dessa temática da “bandidolatria” e “democídio” foram Ricardo Dip e Volney de Moraes Junior, na obra “Crime e Castigo, Reflexões Politicamente Incorretas” (MORAES JÚNIOR, Volney Correa Leite de; DIP, Ricardo Henry Marques. Crime e castigo: reflexões politicamente incorretas. Campinas: Millennium, 2002), onde fazem severas críticas ao “laxismo penal” e a sua contribuição para o aumento da criminalidade; “Laxismo Penal é a tendência a propor solução absolutória, mesmo quando as evidências do processo apontem na direção oposta, ou a aplicação de punição benevolente, desproporcionada à gravidade do delito, às circunstâncias do fato e à periculosidade do infrator, tudo sob o pretexto de que, vítima do esgarçamento do tecido social ou de relações familiares deterioradas, o delinquente se sujeita, quando muito, à reprimenda simbólica, desconsiderando, absolutamente, o livre-arbítrio na etiologia do fenômeno transgressivo” (SILVEIRA, Sérgio Luiz Queiroz Sampaio da. Laxismo penal e a Lei nº 11.343/2006. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1462, 3 jul. 2007. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/10098>. Acesso em: 13 jan. 2019).

[6] Por definição jurídica, o crime de genocídio é a conduta de agir “com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso” (artigo 1º da LEI Nº 2.889, DE 1º DE OUTUBRO DE 1956).

[7] É sabida a distinção entre o garantismo de Ferrajoli (Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002) e a extrema teoria do abolicionismo penal de Zaffaroni (Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2012), na medida em que a primeiro apregoa o respeito aos direitos individuais pelo Estado, enquanto a segunda nega ao Estado capitalista a legitimidade para o exercício do “jus puniendi”, porque seria ele o causador da desigualdade e, a partir daí, da resistência  pelos “excluídos”. Por  Ferrajoli  o Garantismo “significa precisamente ‘a tutela dos direitos fundamentais cuja satisfação, ainda que contra os interesses da maioria é o escopo justificante do direito penal: imunidade do cidadão contra a arbitrariedade das proibições e das punições, defesa dos fracos mediante regras do jogo iguais para todos, dignidade da pessoa do imputado e, portanto, garantia de sua liberdade’”, enquanto o abolicionismo, por negar legitimidade ao Estado, sugere “a solução comunitária de conflitos”.

[8] OLIVEIRA, Gilberto Callado de. A verdadeira face do direito alternativo. 6. ed. São Paulo: Juriá, 2012.

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