Da Redação[1]
Com o Decreto nº 9.288, de 16 de fevereiro de 2018, o Presidente Michel Temer inaugurou o disposto no artigo 34, inciso III[2], da Constituição Federal de 1988, impondo uma intervenção federal, limitada à área de segurança pública, no Estado do Rio de Janeiro, até 31 de dezembro de 2018, com objetivo resolver “o grave comprometimento da ordem pública”[3] naquele Estado, que passa a ter como Interventor[4] o General de Exército Walter Souza Braga Netto. A medida já é válida[5], mas ainda passará pelo crivo do Congresso Nacional[6] e do Conselho da República[7].
Segundo o decreto presidencial, Braga Netto ficará subordinado exclusivamente ao Presidente da República, não estará sujeito às normas estaduais que conflitarem com as medidas necessárias à execução da intervenção e exercerá o controle operacional de todos os órgãos estaduais de segurança pública, podendo, inclusive, requisitar recursos financeiros, tecnológicos, estruturais e humanos do Estado e quaisquer órgãos, civis e militares, da administração pública federal, os meios necessários para consecução do objetivo da intervenção.
Sob o ponto de vista político e jurídico[8] o fato é inédito, até porque a regra constitucional do federalismo brasileiro é de respeito ao “princípio da não intervenção”, assegurando-se a plena autonomia dos Estados e dos municípios[9]; entretanto, nossa recente história registra que no final de 1994, após a experiência de ocupação militar durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (“ECO 92”), o Presidente Itamar Franco e o governador do Rio de Janeiro, Nilo Batista[10], acordaram que as Forças Armadas passariam a controlar a segurança pública no Estado, cuja gestão ficou nas mãos do general Roberto Câmara Senna.
No plano político, para a análise da situação atual, vale destaque às palavras de alguns dos agentes diretamente envolvidos na decisão:
Para o Presidente Michel Temer, a intervenção assim se justificaria:
“O crime organizado quase tomou conta do Estado do Rio de Janeiro, é uma metástase que se espalha pelo país e ameaça a tranquilidade do nosso povo, por isso acabamos de decretar, nesse momento, a intervenção federal na área da segurança pública no Rio de Janeiro. Os senhores sabem que eu tomo essa medida extrema porque as circunstâncias assim exigem”[11].
Já o governador, Luiz Fernando Pezão, confessou a impotência do Estado na gestão da segurança pública e avaliou o cenário dizendo:
“Nós, com a polícia militar e civil, não estamos conseguindo deter a guerra entre facções no nosso estado. Ainda com um componente grave, que são as milícias”[12].
O prefeito da “Cidade Maravilhosa”, Marcelo Crivela, deu tom de congratulações:
“Agradeço e parabenizo o presidente Temer pela ajuda ao Rio. No lançamento do Calendário Rio de Janeiro a Janeiro foi o que eu pedi. Lamento que isso não tenha ocorrido naquela ocasião”[13].
Somente o Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, que é carioca, foi mais cauteloso ao comentar a medida:
“Está se dando um salto triplo sem rede, não pode errar”[14].
Mas nem tudo vem na forma de apoio; para o Procurador da República Carlos Fernando dos Santos Lima (emblemática figura da “Operação Lava-Jato”) a medida é taxada de “intervenção militar” e tenderia ao insucesso:
“É uma aposta errada e fracassada em seu nascedouro, todavia, pretender como única política pública a criação de um inimigo comum para unir a população – neste caso, a criminalidade organizada, esquecendo-se a própria e entranhada corrupção na política, uma criminalidade ainda mais organizada. Tentativas semelhantes de intervenções militares contra inimigos comuns, como a Argentina nas Malvinas e os Estados Unidos no Vietnã, após o entusiasmo inicial despertado, resultaram no gosto amargo do revés político e militar. Não se pode enganar a todos o tempo todo”[15].
É óbvio que os problemas que afligem de há muito a segurança pública em todo o país não se resolvem com meras ações de enfrentamento, nem parece ser essa a razão da tomada da medida no caso… Se não por retórica, parece impertinente comparar “intervenção federal” com “intervenção militar” e, mais ainda, com eventos bélicos internacionais, bem assim, eleger a corrupção nas esferas políticas como único demônio de nossos vários infernos (talvez seja a pior, mas não é certamente o único).
É evidente que o sistema de proteção social engloba ações de prevenção, mas igualmente não exclui as de repressão; daí porque é inegável que no Estado democrático de direito os subsistemas de persecução penal e de execução penal devem ser veículos condutores de políticas públicas eficientes no controle da criminalidade e na preservação da ordem pública; disso se pode concluir que, ainda que seja uma medida excepcional, com amparo constitucional e justificada pelas circunstâncias, a intervenção federal não bastará senão para estancar uma verdadeira hemorragia que assola o Rio de Janeiro historicamente (e não só o Rio), em boa parte causada pelo crime organizado ligado ao tráfico de drogas.
Daí porque é passada a hora de uma participação mais verdadeira da União, que não se resume na intervenção federal; é a União – e não os Estados – que detém a competência legislativa privativa para legislar sobre o aparato normativo de repressão criminal (Direito Penal, Processual Penal e Execução Penal); é a União que no arranjo federativo constitucional se afastou do tema (segurança pública), deixando aos Estados o controle da criminalidade, mesmo quando eles se veem frágeis, impotentes e/ou incompetentes para cumprir seu papel; é a União que mantém uma Polícia Federal que tem por missão constitucional “prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins” e “exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras” (Art. 144, § 1º, II; III).
Pois bem, se o tráfico de drogas é o grande vetor da criminalidade que brota dos morros e se esparrama por todo o Rio de Janeiro e por todos os rincões do país, quem é verdadeiramente o mais omisso ente de nossa federação?
Tomando a expressão simbólica adotada pelo presidente da Câmara dos Deputados, que esse “salto triplo” não se revele uma peripécia circense com fins meramente espetaculosos, mas que se preste a ser o primeiro passo da União e o Congresso Nacional para um verdadeiro enfrentamento do tema a partir de sua gênese.
[1] por Azor Lopes da Silva Júnior, Doutor em Sociologia (Unesp), Mestre (Universidade de Franca) e Especialista (Unesp) em Direito. Coronel da Reserva da PMESP, Advogado, Professor Universitário (UNIRP) e Presidente do Instituto Brasileiro de Segurança Pública (ibsp.org.br). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6088271460892546. https://orcid.org/0000-0002-6340-6636.
[2] Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: […] III – pôr termo a grave comprometimento da ordem pública;
[3] Na densa pesquisa de Francisco Bilac Moreira Pinto Filho sobre a intervenção federal nos Estados, encontramos as seguintes considerações sobre a ordem pública: “A ordem pública é aquela que pressupõe que todos os poderes do Estado estejam em seu funcionamento habitual e que todos os seus cidadãos não estejam sendo perturbados por fatos, atos ou coisas que as autoridades estaduais não possam impedir ou controlar” (PINTO FILHO, Francisco Bilac Moreira. A intervenção federal e o federalismo brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 333).
[4] Segundo o jurista José Cretella Júnior, o interventor “é um delegado da União, a quem o Presidente da República atribui a função específica de providenciar a volta à normalidade, no estado-membro objeto da intervenção”. (CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992. v. 4, p. 2107.).
[5] Segundo a Constituição Federal: “Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: […] X – decretar e executar a intervenção federal;”.
[6] Dispõe a Constituição da República: “Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: […] IV – aprovar o estado de defesa e a intervenção federal, autorizar o estado de sítio, ou suspender qualquer uma dessas medidas;” – “Art. 57. O Congresso Nacional reunir-se-á, anualmente, na Capital Federal, de 2 de fevereiro a 17 de julho e de 1º de agosto a 22 de dezembro. […] § 6º A convocação extraordinária do Congresso Nacional far-se-á: […] I – pelo Presidente do Senado Federal, em caso de decretação de estado de defesa ou de intervenção federal, de pedido de autorização para a decretação de estado de sítio e para o compromisso e a posse do Presidente e do Vice-Presidente da República;”
[7] Nossa Constituição Federal aponta, sem que seja condição essencial para a decretação da intervenção federal: “Art. 90. Compete ao Conselho da República pronunciar-se sobre: I – intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio;”. A composição desse conselho é ditada pela Lei nº 8.041, de 5 de junho de 1990 (Dispõe sobre a organização e o funcionamento do Conselho da República) e pela própria Constituição Federal: “Art. 89. O Conselho da República é órgão superior de consulta do Presidente da República, e dele participam: I – o Vice-Presidente da República; II – o Presidente da Câmara dos Deputados; III – o Presidente do Senado Federal; IV – os líderes da maioria e da minoria na Câmara dos Deputados; V – os líderes da maioria e da minoria no Senado Federal; VI – o Ministro da Justiça; VII – seis cidadãos brasileiros natos, com mais de trinta e cinco anos de idade, sendo dois nomeados pelo Presidente da República, dois eleitos pelo Senado Federal e dois eleitos pela Câmara dos Deputados, todos com mandato de três anos, vedada a recondução.”.
[8] Sobre o tema vale a definição de Lewandowski: “Quanto à natureza jurídica da intervenção federal […]. A intervenção federal é, para a maioria dos estudiosos, essencialmente, um ato político ou um ato de governo, caracterizado pela ampla discricionariedade, inobstante seja empreendido para a consecução de fins constitucionalmente pré-ordenados e sujeitar-se ao controle de legalidade pelo Judiciário e ao controle político por parte do Legislativo”. (LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Pressupostos materiais e formais da Intervenção federal no Brasil. São Paulo: RT, 1994, p. 36-37).
[9] Diz nossa Constituição Federal: “Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”.
[10] À imprensa o governador Nilo Batista dizia à época: “Não considero isso uma intervenção federal, nem uma intervenção do Rio nas atividades federais, cujo déficit é a grande causa desse convênio”. (AZIZ FILHO. Quem manda no Rio sou eu, diz Nilo. Jornal Folha S.Paulo (Caderno Cotidiano), São Paulo, 2 nov. 1994).
[11] ‘Desordem é a pior das guerras’, diz Temer ao assinar intervenção. Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/desordem-e-a-pior-das-guerras-diz-temer-ao-assinar-intervencao/. Acesso em: 17 fev. 2018.
[12] Intervenção federal na segurança do RJ vai até o fim de 2018. Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/intervencao-federal-na-seguranca-do-rj-vai-ate-o-final-de-2018/. Acesso em: 17 fev. 2018.
[13] Em viagem, Crivella agradece intervenção federal no Rio. 16 fev 2018. Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/em-viagem-crivella-agradece-intervencao-federal-no-rio/. Acesso em: 17 fev. 2018.
[14] ‘Salto triplo sem rede’, afirma Maia sobre intervenção no Rio. 16 fev 2018. Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/intervencao-e-decisao-em-momento-extremo-diz-maia/. Acesso em: 17 fev. 2018.
[15] LIMA. Carlos Fernando dos Santos. Intervenção na segurança do Rio é medida adequada para combater a violência? Não. Folha de S.Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2018/02/intervencao-na-seguranca-do-rio-e-medida-adequada-para-combater-a-violencia-nao.shtml. Acesso em: 17 fev. 2018.
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