Azor Lopes da Silva Júnior[1]
Com a Lei nº 13.979[2], de 6 de fevereiro de 2020, além da possibilidade de isolamento e quarentena de pessoas, surge a de realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação e outras medidas profiláticas ou tratamentos médicos específicos, além de estudo ou investigação epidemiológica, exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver e restrição excepcional e temporária de entrada e saída do País, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por rodovias, portos ou aeroportos.
A lei define o isolamento como: “separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus”; já a quarentena: “restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus”.
Juridicamente, importa lembrar que a lei se autoproclama como aquilo que chamamos “Lei Excepcional” quando seu artigo 8º expressa: “Esta Lei vigorará enquanto perdurar o estado de emergência internacional pelo coronavírus responsável pelo surto de 2019”. Isso importa especialmente quando a lei, por seu artigo 3º, § 4º, obriga que “As pessoas deverão sujeitar-se ao cumprimento das medidas previstas neste artigo, e o descumprimento delas acarretará responsabilização, nos termos previstos em lei”.
Nesse ponto, finalmente, vale levar o leitor ao que dispõe o Código Penal brasileiro com relação às chamadas “Leis Excepcionais e Temporárias”: “Art. 3º – A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência”. Em resumo: mesmo depois de vencida a pandemia, aqueles insurgentes que foram (ou ainda estiverem sendo) processados criminalmente não poderão argumentar em sua defesa que a lei já não esteja mais em vigência; isso é o diferencial para as tais leis excepcionais, são aplicadas para além de seu período de vigência (ao fenômeno dá-se o nome de Ultratividade).
Mas além da lei, o que chama a atenção é a Portaria Interministerial nº 05, de 17 de março de 2020, subscrita pelos ministros da Saúde (Luiz Henrique Mandetta) e da Justiça e Segurança Pública (Sérgio Moro), aponta para o uso do Código Penal, imputando aos insurgentes os crimes de “Infração de medida sanitária preventiva” (Art. 268 do Código Penal)[3] e de “Desobediência” (Art. 330 do Código Penal)[4].
Acontece, porém, que malgrado o acerto técnico do enquadramento jurídico atribuído em tese a esses insurgentes, não é correto dizer que eles poderão ser presos para cumprir as penas previstas para esses crimes, como se vem afirmando[5]… É que compelir às medidas sanitárias previstas na lei não implica necessariamente a possibilidade de prisão; o que a lei faz é legitimar as autoridades sanitárias a impor administrativamente as medidas sanitárias nela previstas (internação, isolamento, exames etc.) e esse poder gravita no plano do Direito Administrativo, onde temos a chamada “autoexecutoriedade”, atributo próprio dos atos administrativos, pelo que se dispensa a busca de apoio judicial para a imposição de uma medida dirigida à segurança pública, tranquilidade pública e – no caso particular – a salubridade pública.
Por incrível que possa parecer ao leigo, nem sempre o Direito Penal é o mais eficiente, apesar do simbolismo gravoso do significado de expressões como “prisão”, “detenção”, “reclusão” etc; por vezes com Direito Administrativo se obtém melhores resultados. Ocorre que aqui, ambos os crimes (“Infração de medida sanitária preventiva” e “Desobediência”) apontados pela Portaria Interministerial são o que tecnicamente enquadramos como “infrações de menor potencial ofensivo”, as quais, por força de outra lei mais antiga e já bastante conhecida – a Lei dos Juizados Especiais Criminais – “não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança”, desde que a pessoa seja “imediatamente encaminhada ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer” (Art. 69, parágrafo único, da Lei nº 9.099/95).
Há, todavia, outros crimes igualmente previstos no Código Penal e que são aplicáveis mesmo quando o agente (infrator) meramente expõe a perigo o direito alheio (a saúde, no caso); daí porque, buscando maior poder de coerção sobre indivíduos insurgentes, poderia se pensar em lhes imputar outro crime muito mais grave: “Perigo de contágio de moléstia grave” (Art. 131 do Código Penal)[6] que, por sua vez, é punido com reclusão, de um a quatro anos, permitindo a prisão em flagrante do infrator (ainda que mesmo assim permita a liberdade provisória mediante o pagamento de fiança, como prevê o Código de Processo Penal)[7].
Ainda assim, mesmo nesse crime mais grave, como a pena máxima é de 4 anos, não se admite a decretação de prisão preventiva, por força do disposto no artigo 313 do Código de Processo Penal que adota somente ser “admitida a decretação da prisão preventiva: I – nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos”, o que não é o caso do crime “Perigo de contágio de moléstia grave”, pois sua pena máxima não é superior, mas igual a 4 anos.
Ainda, se poderia cogitar que a imputação mais adequada aos insurgentes fosse o crime de “Perigo para a vida ou saúde de outrem” (Art. 132 do Código Penal)[8], com o ponto negativo de que a pena é a mais branda de todos: detenção, de três meses a um ano…
Ao final, quando da atitude do insurgente resulte não só mero perigo a outrem ou desobediência às autoridades ou medidas sanitárias – mas efetiva contaminação de outra pessoa – será o caso de imputar ao infrator o crime de “Lesão Corporal Grave”[9], cuja pena é de reclusão de 1 a 5 anos de reclusão, implicando daí sim inclusive possibilidade de prisão preventiva, já que a pena máxima supera 4 anos como acima referimos. Em caso de morte da vítima, infectada por deliberada imprudência nos atos ou negligência às normas sanitárias por parte do insurgente, a imputação adequada ao infrator será a do crime de “Lesão Corporal seguida de Morte” (Art. 129, § 3º, do Código Penal: “Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo”), cuja pena é a mais grave de todas: reclusão de 4 a 12 anos.
[1] Pós-doutorando, pesquisador de “Hermenêutica e Positivismo Jurídico” pela Unesp, Doutor em Sociologia (Unesp), Mestre (Universidade de Franca) e Especialista (Unesp) em Direito. Advogado, Professor Universitário (UNIRP), Coronel da Polícia Militar do Estado de São Paulo (reserva remunerada) e Presidente do Instituto Brasileiro de Segurança Pública (ibsp.org.br). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6088271460892546.
[2] LEI Nº 13.979, DE 6 DE FEVEREIRO DE 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L13979.htm).
[3] Infração de medida sanitária preventiva. “Art. 268 – Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa: Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa. Parágrafo único – A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.”
[4] Desobediência. “Art. 330 – Desobedecer a ordem legal de funcionário público: Pena – detenção, de quinze dias a seis meses, e multa”.
[5] O ministro Sérgio Moro declarou à Globonews em 17/03/2020: “O descumprimento pode configurar um crime do nosso Código Penal, que impõe inclusive pena de prisão; agora, ninguém quer que as pessoas sejam presas… Nós estamos colocando isso como a última possibilidade…” (Disponível em: https://g1.globo.com/globonews/jornal-globonews-edicao-das-18/video/governo-autoriza-detencao-de-quem-descumprir-regras-de-quarentena-8407053.ghtml. Acesso em: 17 mar. 2020, 22h16).
Confira-se ainda: “Ministros da Justiça e da Saúde definem regras para internação compulsória de pacientes com coronavírus”. Disponível em: https://www.novo.justica.gov.br/news/ministros-da-justica-e-da-saude-definem-regras-para-internacao-compulsoria-de-pacientes-com-coronavirus. Acesso em: 17 mar. 2020, 22h07.
[6] Perigo de contágio de moléstia grave. “Art. 131 – Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa”.
[7] Código de Processo Penal. Art. 322. A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos.
[8] Perigo para a vida ou saúde de outrem. “Art. 132 – Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente: Pena – detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave. Parágrafo único. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as normas legais”.
[9] O nome (“nomem juris”) não representa seu efetivo significado e sua definição jurídica, pois a norma cuida de ofensas tanto à integridade física quanto também à saúde; Confira: Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: […] § 1º Se resulta: I – Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias; II – perigo de vida.
redação
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