Da Redação [1]
Já às vésperas das festas de final do ano de 2017, em 19 de dezembro, é publicada a Lei nº 13.546, tal e qual no final de 2012, em 20 de dezembro, era publicada a Lei nº 12.760, cuidando de alterar o Código de Trânsito Brasileiro numa questão tormentosa e de efeitos práticos impactantes: o homicídio e a lesão corporal culposos resultantes da condução de veículo automotor em estado de embriaguez.
A embriaguez ao volante e suas consequências jurídico-penais evoluíram ao longo do tempo, desde a tipificação como uma singela contravenção penal (“Direção Perigosa”)[2] até a interpretação que permite subsumi-la a crime hediondo (“Homicídio Qualificado”)[3].
Bem por essa razão, neste artigo não nos deteremos na questão de definição jurídica e prova da embriaguez, tampouco em classificar o delito previsto no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro como de perigo concreto ou abstrato[4], mas voltaremos nossos esforços para revelar que, ao contrário de implicar maior rigorismo penal aos casos de morte no trânsito decorrentes da embriaguez ao volante, a nova Lei nº 13.546, de 2017 deve ser vista como “novatio legis in mellius”, afastando o enquadramento dos futuros casos como homicídio doloso (dolo eventual), tanto assim a competência do tribunal do júri e, ainda, abrindo uma brecha legal para revisões criminais de processos findos.
Também aqui não iremos discutir a tormentosa distinção entre “dolo eventual” e “culpa consciente” e seus consequentes efeitos sobre o acusado, para evitar o recorrente pecado, de muitos que se aventuram a fazê-lo, sem o devido respeito e esforço acadêmico devidos à Teoria Finalista da Ação, cuja adoção pela da reforma penal de 1984 foi festejada como uma evolução do pensamento moderno e humanitário pela comunidade acadêmica. Ainda assim, é forçoso confessar que jamais nos convencerá a tese – cada vez mais crescente na jurisprudência – de que, afora situações muito particulares em que os fatos revelem embriaguez preordenada (dolo direito) ou, ainda, efetiva ocorrência de assentimento ao resultado (dolo indireto), se possa continuar fazendo tábula rasa do conceito de dolo eventual, para justificar uma implacável “vindicta publica” ou um ilógico e ilegal “direito alternativo” ao direito posto.
A partir dessas premissas – que não deverão contaminar nossa análise da norma jurídica, de sua evolução no tempo e de seus efeitos penais e processuais – passemos a observar que foi expressa a alteração promovida no Código de Trânsito Brasileiro pela Lei nº 13.546, no sentido de tipificar como homicídio culposo a morte de terceiro, decorrente da ação daquele motorista que “conduz veículo automotor sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”, e cominar como sanção corporal uma pena de reclusão de 5 a 8 anos.
Confrontando-se essa nova norma com as versões anteriores previstas no Código de Trânsito Brasileiro, se vê que, em sua redação original, a embriaguez – aqui examinada exclusivamente sob o ângulo penal – somente ocupava espaço como tipo penal autônomo (Art. 306), admitindo-se – a despeito de posições em sentido contrário[5] – o concurso material com o homicídio culposo (Art. 302); já a partir da Lei nº 11.275, de 2006, a embriaguez passaria a configurar causa especial de aumento de pena ao homicídio culposo (Art. 302, § 1º, V)[6], até que sobreviesse sua revogação expressa determinada pela Lei nº 11.705, de 2008.
Mais adiante, a questão retornaria pela Lei nº 12.971, de 2014, que passou a tipificar a conduta como forma qualificada do homicídio culposo[7], mantendo-se a quantidade da pena corporal cominada (2 a 4 anos), porém agravando-a quanto à espécie como medida de maior rigor (de detenção para reclusão), capaz de permitir ao magistrado decretar condenação fixando como regime inicial para o cumprimento da pena o fechado[8].
Entretanto, como se não bastassem tantas alterações, essa tipificação operada pela Lei nº 12.971, de 2014, que trazia a forma qualificada nessas circunstâncias do homicídio culposo, seria revogada dois anos após pela Lei nº 13.281, deixando, pela lacuna normativa, caminho aberto à forçada interpretação, no sentido de que a conduta pudesse se subsumir na forma de homicídio havido por dolo eventual.
Em síntese, se após toda essa evolução legislativa, a lacuna normativa deixada permitiria ao exegeta adotar a teoria do assentimento, nos casos de acidentes automobilísticos, que tenham como resultado naturalístico a morte da vítima e evento causal a condição de ebriedade do condutor do veículo automotor, a partir publicação da nova Lei nº 13.546, de 19 de dezembro de 2017, em razão do princípio da legalidade estrita e notadamente do princípio da especialidade, não há mais espaço para sustentar a existência de lacuna normativa ou mesmo conflito aparente de normas, aptos a permitir o enquadramento desses casos concretos como homicídio doloso, decorrente de dolo eventual, mas agora tão somente como homicídios culposos qualificados, na forma da nova redação dada ao artigo 302, § 3º, do Código de Trânsito Brasileiro, e com pena cominada de reclusão, de 5 a 8 anos.
Assim, ainda que maior que aquelas adotadas pelas alterações do código no passado, a pena de reclusão de 5 a 8 anos trazida pela nova lei é bem menor que aquelas previstas no Código Penal para as formas de homicídio doloso, simples (reclusão de 6 a 20 anos) ou qualificado (reclusão de 12 a 30 anos), fazendo da Lei nº 13.546 verdadeira “novatio legis in mellius”.
Por tudo, agora com fundamento na combinação normativa e jurisprudencial[9] entre o parágrafo único do artigo 2º do Código Penal, na forma do artigo 671 do Código de Processo Penal e artigo 66 da Lei de Execução Penal, e a teor da Súmula 611 do Supremo Tribunal Federal, ao contrário do que se pretende produzir como substrato midiático-punitivo[10] a partir da Lei nº 13.546, de 19 de dezembro de 2017, seu efeito jurídico concreto deverá revelar uma nova lei que, por favorecer ao agente, há de ser aplicada mesmo aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado, e que deverão, vencido o período de “vacatio legis”[11], provocar uma onda de incidentes de execução, naquelas tantas hipóteses de condenação por homicídio doloso.
[1] por Azor Lopes da Silva Júnior, Doutor em Sociologia (Unesp), Mestre (Universidade de Franca) e Especialista (Unesp) em Direito. Advogado, Professor Universitário (UNIRP) e Presidente do Instituto Brasileiro de Segurança Pública (ibsp.org.br). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6088271460892546.
[2] Lei das Contravenções Penais (Decreto-lei nº 3.688, de 1941.). Art. 34. Dirigir veículos na via pública, ou embarcações em águas públicas, pondo em perigo a segurança alheia: Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de trezentos mil réis a dois contos de réis.
[3] Quando julgado que seja aplicável ao caso concreto a modalidade de dolo eventual, prevista no Código Penal em seu artigo Artigo 18, I, parte final (“Diz-se o crime: doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”), ocasião em que a conduta poderá ser enquadrada no artigo 121, § 2º, incisos I, II, III, IV, V, VI e VII do mesmo código (homicídio qualificado), o que, a partir do disposto no artigo 1º, I, parte final, da Lei nº 8072/90 (Lei dos Crimes Hediondos), fará classificá-la como crime hediondo.
[4] Sobre essa outra abordagem, confira-se nosso artigo (SILVA JÚNIOR, Azor Lopes da. Primeiras impressões da “nova lei seca”. Brasília, Consulex, 1997, v. 17, n. 384, p. 30–35, jan., 2013.), que cuidava da então recém publicada Lei nº 12.760, de 20 de dezembro de 2012.
[5] LIMA, Marcellus Polastri Lima. Crimes de Trânsito, Aspectos Penas e Processuais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris,2005, p. 200-201.
[6] § 1º No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) à metade, se o agente: […] V – estiver sob a influência de álcool ou substância tóxica ou entorpecente de efeitos análogos. (inciso V incluído pela Lei nº 11.275, de 2006 e adiante revogado pela Lei nº 11.705, de 2008).
[7] Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor: Penas – detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.§ 2º Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente: Penas – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. (Parágrafo incluído pela Lei nº 12.971, de 2014, e adiante revogado pela Lei nº 13.281, de 2016)
[8] A conclusão decorre da leitura do Código Penal: “Art. 33 – A pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semi-aberto ou aberto. A de detenção, em regime semi-aberto, ou aberto, salvo necessidade de transferência a regime fechado”.
[9] Código Penal. Art. 2º – […] Parágrafo único – A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado. Código de Processo Penal. Art. 671. Os incidentes da execução serão resolvidos pelo respectivo juiz; Lei de Execução Penal. Art. 66. Compete ao Juiz da execução: I – aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado; Súmula 611 do Supremo Tribunal Federal: “Transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções a aplicação de lei mais benigna”.
[10] Quando falamos de um “substrato midiático-punitivo”, adotamos como premissa que o Direito Penal frequentemente é utilizado pelos governos populistas como ferramenta de marketing, para anunciar uma postura aparentemente de maior rigor, com forte apelo maniqueísta, que nem sempre revela efeitos práticos compatíveis como a mensagem propagada, já que das entrelinhas jurídicas brotam obstáculos insuperáveis, seja pela inabilidade legiferante ou por sua deliberada intenção de enganar a opinião pública leiga. Ao mesmo tempo, sem a pretensão de mínimo aprofundamento nessa discussão, convém dizer que ao afirmarmos isso, não queremos adotar a visão fatalista sobre a criminalidade defendida por alguns teóricos como Zaffaroni e Foucault (Abolicionismo Penal), Shecaira (Teoria do Etiquetamento) ou, dentre outros tantos, Bourdieu (midiatismo: influência da televisão), porque a temos como construções teóricas utópicas, que não apresentam alternativas pragmáticas aos modelos e arranjos sociais e jurídicos que criticam e condenam.
[11] Lei nº 13.546, de 19 de dezembro de 2017. Art. 6º Esta Lei entra em vigor após decorridos cento e vinte dias de sua publicação oficial. Brasília, 19 de dezembro de 2017; 196º da Independência e 129º da República.
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