O Termo Circunstanciado de Ocorrência: duas décadas de discussão

 Marcello Martinez Hipólito[1]

Um tema que tem rendido discussões acaloradas nos tribunais do Brasil entre Oficiais da Polícia Militar e Delegados da Polícia Civil e Federal é o conhecido Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), previsto no art. 69[2] da Lei 9.099/95[3], aplicável nas contravenções penais e nos crimes cuja pena privativa de liberdade máxima prevista não exceda dois anos.

A discussão sobre o tema parece ter ganhado novos contornos com o julgamento virtual realizado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) na semana passada, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3807[4], impetrada pela Associação de Delegados de Polícia do Brasil (ADEPOL), que teve como Relatora a Ministra Cármen Lúcia, contra disposição do § 3º do artigo 48[5] da Lei 11.343/2006[6], que prescrevia a possibilidade de o Juiz de Direito, no caso de porte de droga do art. 28[7] da citada lei, lavrar o Termo Circunstanciado de Ocorrência, sob o argumento de que seria ato exclusivo de polícia judiciária.

No julgamento por ampla maioria, com voto divergente do Ministro Marco Aurélio, ficou assentado no voto da Relatora dois aspectos relevantes na discussão sobre o TCO: que a lavratura do TCO não consiste num ato de polícia judiciária (privativo) e que não constitui apuração de infração penal (investigação).

No aspecto referente a lavratura do TCO não ser ato de polícia judiciária, tampouco de investigação, assim constou no voto da Relatora:

“O entendimento de que a lavratura de termo circunstanciado não configura atividade investigativa e, portanto, não é função privativa de polícia judiciária não contraria jurisprudência assentada deste Supremo Tribunal Federal”.

“[…] o termo circunstanciado não é procedimento investigativo, mas peça informativa com descrição detalhada do fato e as declarações do condutor do flagrante e do autor do fato […]”.

A discussão do tema não se encerra aqui, pois existem no próprio STF outras Ações Diretas de Inconstitucionalidade impetradas e ainda pendentes de julgamento, como a ADI 3724, ADI 4318, ADI 5637, ADI 6201, ADI 6245. Resta aguardar como vão se posicionar os respectivos Ministros Relatores em face do julgamento da ADI 3807. Há também em tramitação no Conselho Nacional de Justiça e em fase de julgamento suspenso por um pedido de vista, o Procedimento de Controle Administrativo nº 0008430- 38.2018.2.00.000, que trata da possibilidade de a Polícia Militar do Distrito Federal lavrar TCO em face de provimento do Corregedor de Justiça do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.

As primeiras discussões sobre se a Polícia Militar pode lavrar o TCO sugiram na Brigada Militar do Rio Grande do Sul, que em algumas unidades começou a lavrar o TCO logo após a promulgação da Lei 9.099/95, tendo sido consolidado a possibilidade em todo o Rio Grande do Sul por meio da Portaria SJS n. 172, de 16 de novembro de 2000, do Secretário de Segurança Pública daquele estado. A Portaria foi contestada judicialmente pela Associação dos Delegados de Polícia do Rio Grande do Sul (ASDEP/RS), ocasião em que o Pleno do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em julgamento no dia 12 de março de 2007, deu por improcedente a ação (Ação Direta de Inconstitucionalidade Estadual. Processo n. 70014426563).

Mas o julgamento mais antigo de Tribunal que se tem notícia foi o proferido pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, no habeas corpus nº 00.002909-2, de Blumenau, que teve como Relator o Desembargador Nilton Macedo Machado, em votação unânime da 2ª Câmara Criminal, com o seguinte teor na ementa do julgamento:

Para a persecução penal dos crimes de menor potencial ofensivo, em face do sistema previsto na Lei dos Juizados Especiais Criminais, e dando-se adequada interpretação sistemática à expressão “autoridade policial” contida no art. 69 da Lei n. 9.099/95, admite-se lavratura de termo circunstanciado por policial militar, sem exclusão de idêntica atividade do Delegado de Polícia.

Desde então, outros tribunais se manifestaram a favor de a Polícia Militar lavrar TCO e encaminhá-lo diretamente para a Justiça e, em alguns casos, para o Ministério Público, mas a grande maioria das manifestações se deram por meio de regulamentação administrativa da matéria por resoluções ou provimentos, como o próprio Tribunal de Justiça de Santa Catarina em 1999, mais os tribunais dos estados do Paraná, Mato Grosso do Sul, São Paulo[8], Sergipe, Goiás, Distrito Federal, Minas Gerais, Rondônia, Rio Grande do Norte, Ceará, Tocantins, Roraima e Pernambuco.

O próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se pronunciou sobre o tema e a possibilidade de a Polícia Militar lavrar o TCO no julgamento do Habeas Corpus nº 7199[9], de 28 de setembro de 1998, Relator Ministro Vicente Leal. No mesmo sentido a Comissão Nacional de Interpretação da Lei n. 9.099/95, sob a Coordenação da Escola Nacional da Magistratura, reunida na cidade de Belo Horizonte em 27 de outubro de 1995; o Colégio dos Desembargadores Corregedores-Gerais de Justiça do Brasil, durante o XVII Encontro Nacional, no dia 5 de março de 1999, na “Carta de São Luís do Maranhão”; os Coordenadores de Juizados Especiais, no VII Encontro Nacional realizado em Vila Velha, Espírito Santo, em 27 de maio de 2000, no Enunciado nº 34; e o Conselho Nacional do Ministério Público no Pedido de Providências nº 0.00.000.001461/2013-22, em 01 de setembro de 2014, porém referente a Polícia Rodoviária Federal lavrar o TCO.

O TCO já é lavrado pela Polícia Militar em pelo menos 12 estados e mais dois ou três se preparam para iniciar nos próximos meses (Confira-se na figura abaixo: Mapa do TCO-PM no Brasil) Por parte do Governo Federal já ocorreram duas tentativas de apoiar a lavratura do TCO pela Polícia Militar, a primeira em 2009, quando e Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça promoveu um seminário nacional sobre o Termo Circunstanciado lavrado pelas Polícias Militares e realizou apenas uma única edição de um curso à distância, e, mais recentemente, em fevereiro de 2020, quando a mesma Secretaria instituiu pela Portaria nº 52 uma comissão técnica para a “Indução à Lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência pelas Polícias Militares”[10], porém anulada no dia seguinte.

Em meio a todo esse imbróglio, aparentemente mais político do que jurídico, a lavratura do TCO pela Polícia Militar tem avançado nos estados, com apoio mútuo das próprias polícias militares, Federação Nacional de Oficiais Militares Estaduais (FENEME)[11] e Conselho Nacional de Comandantes-Gerais (CNCG)[12], produzindo melhoria formidável no atendimento à população, seja pela drástica diminuição da burocracia, em consequência do tempo de envolvimento das guarnições nas ocorrências, alguns estudos indicando uma diminuição no tempo superior a 90%, seja pela qualificação do atendimento a população, em especial a partir da adoção da tecnologia mobile, ponto este em que a Polícia Militar de Santa Catarina se encontra na vanguarda, tendo recebido vários prêmios além de reconhecimento nacional e internacional.

______________

Notas

[1] Coronel PM da Reserva Remunerada da Polícia Militar de Santa Catarina, Mestre em Gestão de Políticas Públicas pela UNIVALI, Bacharel em Direito pela UFSC, Membro fundador do IBSP.

[2] Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários. Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. Em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima.

[3] Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm >.

[4] Disponível em:  < http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2425065 >.

[5] Art. 48. O procedimento relativo aos processos por crimes definidos neste Título rege-se pelo disposto neste Capítulo, aplicando-se, subsidiariamente, as disposições do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal. § 1º O agente de qualquer das condutas previstas no art. 28 desta Lei, salvo se houver concurso com os crimes previstos nos arts. 33 a 37 desta Lei, será processado e julgado na forma dos arts. 60 e seguintes da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais. § 2º Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários. § 3º Se ausente a autoridade judicial, as providências previstas no § 2º deste artigo serão tomadas de imediato pela autoridade policial, no local em que se encontrar, vedada a detenção do agente. § 4º Concluídos os procedimentos de que trata o § 2º deste artigo, o agente será submetido a exame de corpo de delito, se o requerer ou se a autoridade de polícia judiciária entender conveniente, e em seguida liberado. § 5º Para os fins do disposto no art. 76 da Lei nº 9.099, de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena prevista no art. 28 desta Lei, a ser especificada na proposta.

[6] Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm#view >.

[7] Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. § 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica. § 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. § 3º As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses. § 4º Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses. § 5º A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas. § 6º Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a: I – admoestação verbal; II – multa. § 7º O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.

[8] Para maiores dados em relação ao estado de São Paulo confira-se: < https://revistafpolicial.policiamilitar.sp.gov.br/EdAntigas/Revista%20A%20For%C3%A7a%20Pol%C3%ADcial%20n%C2%BA%2058.pdf >.

[9][9] Acórdão completo disponível em: < https://ww2.stj.jus.br/processo/ita/documento/mediado/?num_registro=199800196250&dt_publicacao=28-09-1998&cod_tipo_documento= >.

[10] Texto integral disponível em: < https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-content/uploads/sites/41/2020/02/sei-08020005534-2019-14-2pdf-1_210220205133.pdf >.

[11] Disponível em: < https://www.feneme.org.br/ >.

[12] Confira-se em: https://cncg.org.br/2020/06/planario-virtual-do-stf-decide-que-lavratura-do-tco-nao-e-ato-de-policia-judiciaria/

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