O dilema da atividade de polícia administrativa em tempos de estado de exceção inconstitucional, de liberdades públicas reduzidas indevidamente e de possibilidade de desobediência civil[1]
Dequex Araujo Silva Junior[2]
O evento da pandemia do coronavírus, como qualquer evento, conforme Hannah Arendt[3], interrompeu processos e procedimentos de rotina, engendrando, assim, instabilidade e insegurança momentâneas nas vidas das pessoas e nas formas de prover suas necessidades, sendo agravadas, no âmbito político, por tratar o estado de emergência como se estado de sítio fosse. Com isso, as liberdades públicas, entendidas “como poderes de autodeterminação” concedidas ao cidadão pelo Estado como direito de cidadania, conforme Jean Rivero e Hugues Moutouh, estão sendo restringidas de forma indeterminada por meio de decretos sucessivos oriundos das três esferas do Executivo (federal, estadual e municipal), criando, inclusive, conflitos entres eles por desavenças políticas e ideológicas. O problema agravar-se-á ainda mais se por conta dessas restrições começarem a surgir o fenômeno político da desobediência civil, por parte da população, em decorrência não só de considerar como injustos tais decretos, mas também pelos conflitos entre eles, pois ao cumprir um pode estar descumprindo os demais. Dentro deste espectro, como fica a atuação das Polícias Militares que terão que garantir, como polícia administrativa, a ordem pública e as liberdades públicas dentro de um estado exceção inconstitucionalmente estabelecido? Em caso de desobediência civil, como os policiais militares deverão proceder para não incorrer em abuso de autoridade ou em qualquer outro ato de desvio administrativo ou penal, dentro de um cenário onde os decretos se sobrepõem, causando confusão generalizada?
A suspensão de direitos civis temporariamente em determinados espaços para o restabelecimento da ordem não é novidade. Ela ocorre aqui no Brasil por meio do dispositivo conhecido como Garantia da Lei e da Ordem, que está previsto no artigo 142 da Constituição Federal[4], sendo aprovada pela primeira vez pelo Congresso em 23 de julho de 1991, que, diferentemente da Constituição de 1967/69 (que concedia apenas ao Executivo o direito de pedir a intervenção militar), permite que os outros poderes também peçam a intervenção militar em nome da lei e da ordem, sendo, entretanto, susceptíveis de veto do presidente da República.
O estado de exceção, que se tornou recorrente nas atuais democracias, é definido pelo filósofo italiano Giorgio Agamben da forma seguinte: o estado de exceção se constitui num espaço anômico onde o que está em jogo é uma força de lei sem lei, onde a aplicação de uma norma não está contida nela e nem pode ser dela deduzida, ficando separada a norma e sua aplicação[5]. Agamben recorre à definição de “força de lei” de Jacques Derrida, que basicamente se refere não à lei, mas àqueles decretos que o poder executivo pode promulgar, especialmente durante o estado de exceção. Este “define um ‘estado da lei’ em que, de um lado, a norma está em vigor, mas não se aplica (não tem “força”) e em que, de outro lado, atos que não têm valor de lei adquirem sua ‘força’”. O problema é que não foi instituído o estado de exceção, que no nosso caso é denominado de estado de sítio, da forma prevista constitucionalmente, logo, não pode haver decretos que restrinjam as liberdades públicas. Não há uma situação de ameaça à ordem pública que justifique qualquer medida de Garantia da Lei e da Ordem, e mesmo se houvesse é de competência exclusiva do Presidente da República, conforme a Constituição e não cabe interpretação de qualquer natureza.
O impacto desses decretos incide diretamente sobre as liberdades públicas, que são classificadas, conforme Rivero e Moutouh de forma seguinte: liberdades da pessoa física; liberdades da pessoa intelectual e moral; liberdades sociais e econômicas. As liberdades da pessoa física são garantidas através das proteções gerais e das proteções particulares. Através da primeira busca-se proteger indistintamente os diversos aspectos da atividade humana, assegurando a defesa prévia das condições físicas a partir do respeito à pessoa humana e à liberdade individual. Por meio da segunda busca-se garantir a liberdade à vida privada e a liberdade de trânsito. A liberdade à vida privada diz respeito ao direito à intimidade da vida privada, tendo a proteção do domicílio como expressão máxima da vida privada. A liberdade de trânsito é o direito de se locomover como bem entender, limitado por alguns regimes próprios como, por exemplo, controle de saída e entrada no território nacional, controle de veículos oferecidos ao público (taxis, transporte coletivo etc.). Com relação às liberdades da pessoa intelectual e moral destacam-se a liberdade de opinião, liberdade da difusão sistemática do pensamento através do ensino, liberdade de se reunir, manifestar e de associar-se. Por fim, as liberdades sociais e econômicas estão relacionadas à vida profissional e à atividade econômica: direito de propriedade, liberdade de trabalho, liberdade de comércio e indústria. Incluem-se também direitos a liberdade de greve, de sindicalização e associação à defesa coletiva dos interesses profissionais.
Como vimos acima, liberdades públicas são liberdades concedidas; são liberdades compartilhadas, mas reguladas por normas jurídicas e administrativas. Se são concedidas e reguladas pelo ente estatal, ressaltam Rivero e Moutouh, as liberdades públicas são limitadas pelo direito positivo, quer de forma absoluta, quer de forma relativa. As absolutas são aquelas limitações onde as exigências da vida social impõem a todos e em todas as circunstancias tais como: a proteção das bases materiais da vida social, onde é a ordem material que se expressa na segurança, seguridade, salubridade; a proteção da ética social, onde é a base moral ou ética comum, que se faz necessário para um mínimo de acordo sobre um mínimo de valores; a proteção do Estado, onde há de se proteger as estruturas estatais e os seus agentes contra o excesso de liberdades, da violência material, bem como a proteção dos valores políticos que fundamentam o Estado. As relativas são limitações de alcance limitado, quer no tempo, quer no espaço, quer nos sujeitos que elas alcançam, podendo ser: restrições próprias de certas categorias de pessoas, onde se enquadram, por exemplo, os agentes públicos que têm algumas de suas liberdades limitadas face às suas responsabilidades particulares quanto da autoridade que exercem; restrições peculiares a certas circunstâncias, onde tais restrições estão em conformidade com as exigências da ordem e variam conforme o momento e o lugar (onde enquadra-se, ao meu ver, o estado de sítio ou de defesa).
O Estado reconhece os princípios de liberdade transformando-os em liberdades públicas, regulamentando e assegurando o respeito. Para tanto, alertam Rivero e Moutouh, há dois tipos de técnicas ou regime que regulamentam as liberdades públicas: o regime de repressão e o regime de prevenção. Para a tradição liberal, o regime repressivo é aquele que está em mais conformidade com as exigências da liberdade, pois se fia na aplicação da regra geral que afirma: a liberdade é a regra e a restrição a exceção, onde tudo que a lei penal não proíbe é lícito. Para o cidadão, esse regime oferece duas vantagens: a) permite o exercício imediato da liberdade; e, dá a ele uma segurança jurídica, pois ele já sabe de antemão quais os limites para o exercício das liberdades. É essa segurança que fundamenta a liberdade e se ele decidir ultrapassar se expõe à repressão da norma jurídica. Nesse sentido, o regime repressivo é favorável à liberdade, não obstante ser nocivo a ela caso as infrações se multipliquem, agravando as punições.
No regime de prevenção, a liberdade só pode ser exercida com o consentimento prévio da administração pública. O objetivo não é punir os abusos da liberdade, mas impedir que ocorram. É do executivo que provém a ordem de intervir no exercício da liberdade (no caso de estado de exceção é o soberano, como afirma Carl Schmitt, quem decide o que pode e o que não pode fazer). Nesse sentido, o que se avaliar quando da tomada da decisão é se a liberdade pode ameaçar a ordem pública, sendo, assim, somente permitido o que for autorizado de forma expressa ou tácita. No regime de prevenção, a decisão da autoridade não decorre da aplicação de uma regra, mas da apreciação da compatibilidade, em uma dada situação, do exercício da liberdade com as necessidades da ordem, sendo, assim, a decisão imprevisível.
No caso do estado de emergência legalmente decretado, mas metamorfoseado de estado de exceção ilegalmente instituído, os poderes executivos, especialmente os municipais, estão transcendendo as técnicas de repressão e de prevenção exigindo de forma autoritária a não circulação das pessoas nos espaços públicos e também privados, impedindo, assim, as liberdades públicas, sem qualquer fundamentação teórica (política e jurídica) e, em muitos casos, sem qualquer justificação factual, pois observa-se a aplicação dos decretos restritivos de forma generalizada, inclusive em locais onde não há qualquer notícia de casos de pessoas infectadas pelo coronavírus ou, quando há, não passa de meia dúzia de pessoas, que, por medidas corretamente estabelecidas, são isoladas para o devido tratamento.
Dentro desse contexto de estado de exceção ilegal e de restrição das liberdades públicas injustificada, não está fora de cogitação a possibilidade da desobediência civil por parte daqueles que estão sendo severamente restringidos do exercício dos seus direitos civis, econômicos e sociais. Henry David Thoreau, quando questionou as leis que admitam ainda a escravidão em Massachusetts, fez os seguintes questionamentos: “Será que o cidadão deve, ainda que por um momento e em grau mínimo, abrir mão de sua consciência em prol do legislador? Nesse caso, por que cada homem dispõe de uma consciência?”. Em outro momento ele fez outra indagação: “Leis injustas existem: devemos nos contentar em obedecê-las? Ou nos empenhar em aperfeiçoá-las, obedecendo-as até obtermos êxito? Ou devemos transgredi-las imediatamente?”[6]. É conveniente destacar que Thoreau está se referindo às leis ordinárias e não aos decretos que teriam “força de lei” em situações de exceção, e muito menos se refere aos decretos fora de uma situação de exceção, que por conta disso, ao meu ver, não possuem “força de lei” quando direcionados para medidas de restrição de liberdades públicas acima citadas, salvo nos casos já regulamentado pelas leis ordinárias.
Em um caso hipotético de desobediência a um dos decretos estaria o cidadão incorrendo na desobediência civil ou criminal? Hannah Arendt nos esclarece: “enquanto a desobediência civil pode ser considerada como uma perda significativa da autoridade da lei (ainda que dificilmente possa ser vista como sua causa), a desobediência criminal não é mais que a consequência inevitável da desastrosa erosão da competência e do poder policial”. Diferentemente da desobediência criminal, que viola a lei de forma clandestina, a desobediência civil viola a lei de forma pública e surge “quando um número significativo de cidadãos se convence de que, ou os canais normais para mudanças já não funcionam, e que as queixas não serão ouvidas nem terão qualquer efeito, ou então, pelo contrário, o governo está em vias de efetuar mudanças e envolve e persiste em modos de agir cuja legalidade e constitucionalidade estão expostas a graves dúvidas”. Ou seja, “a desobediência civil pode servir tanto para mudanças necessárias e desejadas como para preservação ou restauração necessária e desejada do status quo”. No caso aqui tratado, a possibilidade de uma desobediência civil estaria mais condizente com a restauração do status quo. Mas aí vem uma outra questão que não possuo competência para responder aqui e alhures: seria desobediência civil o não cumprimento dos decretos restritivos de liberdades que estão fora do contexto político-jurídico que lhe garantiria sobretudo legitimidade (o estado de exceção)?
E dentro dessa barafunda político-jurídica, como fica a atuação das Polícias Militares que terão que garantir, como polícia administrativa, a ordem pública e as liberdades públicas dentro de um estado de exceção inconstitucionalmente estabelecido? Em caso de desobediência civil (se considerarmos o não cumprimento dos referidos decretos como tal), como os policiais militares deverão proceder para não incorrer em abuso de autoridade ou em qualquer outro ato de desvio administrativo ou penal, dentro de um cenário onde os decretos se sobrepõem, causando confusão generalizada?
As policiais militares brasileiras são a face visível do poder que garante as liberdades públicas ao fiscalizar o cumprimento por parte dos cidadãos das normas jurídicas penais e administrativas. Essas polícias administrativas agem em conformidade tanto com o regime repressivo como o regime preventivo. No controle e repressão das infrações penais, a polícia atua dentro do regime repressivo, mas quando atua na regulação das liberdades públicas com o intuito de manter a ordem está em conformidade com o regime preventivo. Estas atuações (repressiva e preventiva), entretanto, se dão dentro de uma normalidade democrática, não em uma situação de estado de exceção, pois neste caso as polícias militares atuarão em cumprimento dos decretos emanados da autoridade soberana, pois, como já foi dito acima, é o soberano que decide sobre o estado de exceção. Se o nosso regime é presidencial, quem tem a responsabilidade de decidir sobre o estado de exceção é o presidente e não os governadores e prefeitos. Se o presidente não decidiu, estamos política e juridicamente vivendo uma situação de normalidade, logo, não há respaldo legal para os policiais militares exigirem que os cidadãos cumpram os decretos governamentais e municipais restritivos de liberdades, salvos aqueles que estão previstos na Constituição e nas leis ordinárias. Por analogia, não vejo possibilidade de algum tipo de insurgência por parte do cidadão com relação aos decretos das esferas estadual e municipal ser enquadrado como desobediência civil, pois os decretos não possuem “força de lei”.
À guisa de conclusão, busquei aqui apenas trazer algumas inquietações, que permeiam os policiais militares que estão atuando dentro deste contexto de insegurança jurídica, não aprofundando o tema, pois, além de não ser o local adequado, não sou competente para tratá-lo com o zelo requerido. As minhas argumentações partiram de minhas experiências sensoriais, somadas a uma parca leitura sobre estado de exceção, liberdades públicas e desobediência civil.
NOTAS
[1] Título original e completo apresentado pelo autor. Os artigos da coluna “Notícias” não são submetidos à avaliação editorial e não obedecem às normas da ABNT para publicação de artigos científicos, expressando a opinião de seus autores, respeitados os princípios adotados pelo Instituto Brasileiro de Segurança Pública: Rigor científico; Isenção ideológica; Liberdade intelectual.
[2] Diretor do Instituto Brasileiro de Segurança Pública no Estado da Bahia. É Doutor e Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia. Currículo completo disponível em: http://lattes.cnpq.br/1455748373661314
[3] ARENDT, Hannah. Crise da República. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 2017.
[4] Este dispositivo constitucional parece se constituir numa forma de invocar o artigo 136, que estabelece o Estado de Defesa, sem, entretanto, declará-lo. Conforme o artigo, “O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza” (grifo nosso).
[5] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. – São Paulo: Boitempo, 2004 (Estado de sítio).
[6] THOREAU, Henry David. A desobediência civil. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.
redação
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Artigo bastante e suficiente para se entender que está ocorrendo uma ilegalidade escancarada com a justificativa débil de proteção à saúde da população. É é de admitir que certas estruturas do poder constituído, tão zelosos em outras circunstâncias na manutenção das liberdades coletivas e individuais estejam sendo simplesmente omissos e coniventes com tão graves ataques à constituição
Excelente reflexão, visto que o Brasil atualmente parece ter se dividido em mais de 5.000 pequenas repúblicas.