Ideologias e Organizações Criminosas: o episódio nos complexos do Alemão e da Penha

Talvez por infeliz coincidência, após havermos, no dia 22 de outubro (2025), colocado como ponto central de nossa palestra em Lisboa, no Instituto Superior de Ciências Policias e Segurança Interna da Polícia de Segurança Pública de Portugal, num evento acadêmico em que comemorávamos o 8º ano de fundação de nosso Instituto Brasileiro de Segurança Pública (IBSP), a questão da criminalidade organizada ligada ao narcotráfico e a consequente dupla vitimização que a população dos morros na cidade do Rio de Janeiro (e de outros espaços de exclusão social semelhantes no mundo), sobreveio, no dia 28, a operação policial, nos complexos do Alemão e da Penha, que ganhou espaço nos grandes canais da imprensa mundial.

Falamos em “dupla vitimização”, porque a esmagadora parte dessa população é trabalhadora e de boa índole, vivendo vitimizada, tanto pela exclusão social e, mais gravemente ainda, pela violência permanente que sofre de uma ínfima parcela de indivíduos que compõem as organizações criminosas, ditando regras pelo medo e pela força extralegal e ilegítima, numa forma de autoridade imposta por um “estado paralelo”.

Entrevistados pelo Portal R7, no dia 29 de outubro de 2025, registramos nossa opinião de que há décadas o controle estatal dessa criminalidade vem se mostrando ineficiente e, em boa parte, graças ao governo federal, que não investe em segurança pública, notadamente naquilo que compete constitucionalmente à Polícia Federal (a prevenção e a repressão da criminalidade tenha repercussão interestadual ou internacional):

“Para o presidente do IBSP (Instituto Brasileiro de Segurança Pública), Azor Lopes, o combate ao crime tem se mostrado ‘ineficiente’, e por isso as facções crescem tanto. ‘Certamente as organizações criminosas se fortaleceram porque as agências policiais, principalmente a Polícia Federal, vêm se mostrando ineficientes’, afirma. Por isso, ele defende uma maior cooperação. ‘Só um trabalho realmente qualificado, permanente e não seletivo ou midiático de inteligência da Polícia Federal, em parceria com o Coaf, complementado pelas polícias estaduais, seria capaz de sufocar as organizações criminosas’, acredita”. (Disponível em https://noticias.r7.com/brasilia/brasil-tem-88-faccoes-criminosas-e-91-delas-tem-poder-financeiro-independente-02112025/. Acesso em 02 nov. 2025).

Também nos posicionamos quanto àquilo que passou a ser chamado “narcoterrorismo”, tema que desbordou desse episódio a partir de dados e fatos, mas que são capitalizados pelo discurso político no limiar das próximas eleições de 2026:

“A mesma opinião é compartilhada pelo presidente do Instituto Brasileiro de Segurança Pública, Azor Lopes da Silva Júnior. ‘O que o governador chama de ‘narcoterrorismo’ não se enquadra no conceito jurídico de terrorismo, ainda que os métodos empregados sejam semelhantes, pois a motivação é diferente’, destacou”. (Disponível em https://noticias.r7.com/brasilia/narcoterrorismo-x-faccao-criminosa-por-que-rio-e-governo-federal-usam-termos-diferentes-01112025/. Acesso em 02 nov. 2025).

Por definição universal e adotada pelo Brasil, o terrorismo consiste na prática de atos de violência por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública; o narcotráfico não tem essa motivação ou vocação, daí porque não se enquadra no conceito internacional e tampouco nacional.

Também o Associado do IBSP, Coronel da Polícia Militar do Estado de São Paulo, José Vicente da Silva Filho, ex-Secretário Nacional da Segurança Pública (2002), foi chamado pela imprensa a avaliar o episódio e ao Portal UOL, criticando a histórica forma como se enfrenta o problema do narcotráfico no Rio de Janeiro:

O que a gente observa, de maneira geral, é falta de um plano geral para a segurança pública do Rio de Janeiro. A gente percebe que, por mais que pareçam planejadas, as ações, na verdade, são muito improvisadas. E a crença de que, armando as polícias com tropas de batalha, de guerra, fazendo operações após operações, que isso vai cuidar da segurança pública do Rio, não é verdade. É uma grande mentira que se coloca aí. A perda inestimável de quatro policiais da superação de hoje é o grande símbolo da tragédia dessa ação. E também acabou matando mais 60 pessoas, um colosso de resultados negativos que eu nunca vi no Brasil, não é só no Rio de Janeiro. Em uma única operação, em poucas horas, essa matança toda mostra também descontrole sobre essa tropa que estava operando. Qualquer análise mais fria, cuidadosa e perícia vai constatar equívocos, erros incríveis nessa operação”. (Disponível em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2025/10/29/falta-plano-geral-e-sobra-improviso-nas-operacoes-do-rj-diz-ex-secretario.htm. Acesso em 02 nov. 2025).

A par de toda repercussão, sobrevieram ao evento, por parte do Poder Executivo, o “Projeto de Lei Antifacção“, que cria o tipo penal de “organização criminosa qualificada”, protocolizado na Câmara dos Deputados no dia 31 de outubro de 2025, e no âmbito do Poder Judiciário o pedido de informações do Supremo Tribunal Federal ao governo do Rio de Janeiro sobre a operação policial do dia 28 de outubro.

O Projeto de Lei Antifacção, segundo matéria publicada pela Agência Brasil, traria como novidades que “Homicídios cometidos por ordem ou em benefício de facções criminosas poderão levar a penas de 12 a 30 anos. As penas passam a ser mais duras, de 8 a 15 anos de prisão se a atuação da organização tiver como objetivo o controle de territórios ou atividades econômicas, mediante o uso de violência, coação ou ameaça. Haverá ainda aumento de pena se houver conexão com outras organizações, comprovação de transnacionalidade da organização, domínio territorial ou prisional pela organização criminosa, e também nos casos de morte ou lesão corporal de agente de segurança pública“.

Na verdade, a notícia é um tanto quanto midiática, porque repisa o que já existe quanto à cooperação policial internacional e infiltração de policiais e de colaboradores em facções particularmente e, com relação ao anunciado aumento de pena no caso de homicídio, o Código Penal de há muito já prevê pena entre 12 e 30 anos de reclusão; já em relação ao crimes previstos na Lei nº 12.850, de 2013, o proposto aumento de 8 a 15 anos verdadeiramente eleva aquelas hoje estão fixadas entre 3 a 8 anos de reclusão (artigo 2º) e entre 4 a 12 anos de reclusão (artigos 21-A e 21-B).

D’outra banda, o pedido de informações feito pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ao governador do Estado do Rio de Janeiro se presta analisar se houve desrespeito à decisão do Supremo na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 635 – “ADPF das Favelas”), ajuizada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) em 19 de novembro de 2019 e distribuída à relatoria do ministro Edson Fachin, sob a alegação de omissão estrutural do Poder Público na adoção de medidas de redução da letalidade policial e demora injustificada no cumprimento da Sentença de 16 de fevereiro de 2017, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Favela Nova Brasília v. Brasil, postulando ao STF impusesse ao Estado do Rio de Janeiro a elaboração de um plano de redução da letalidade policial; valendo destacar, que assim restou ementada a decisão de nossa Suprema Corte:

Direito Constitucional e outras matérias de Direito Público. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Omissão estrutural do poder público na adoção de medidas para a redução da letalidade policial. Quadro crônico de grave violação de direitos humanos e fundamentais. Homologação parcial do plano de redução da letalidade policial. Obrigatoriedade de respeito aos princípios de uso proporcional da força, cabendo às forças de segurança a definição do nível de força necessário a cada contexto e operação. Determinações complementares decorrentes do princípio da prestação de contas da atividade policial e da função de controle externo pelo Ministério Público. Criação de grupo de trabalho de acompanhamento sob coordenação do Conselho Nacional do Ministério Público. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental julgada parcialmente procedente.“.

De toda a complexidade que toma o assunto e os que a ele se interligam, há fatos palpáveis e inegáveis por qualquer dos polos e matizes ideológicos:

(1) organizações criminosas sempre existiram e em todos os países, independentemente de suas particulares ideologias;

(2) essas organizações movimentam um nicho de mercado, havendo oferta de seus produtos para atender a procura, daí a lógica é do lucro;

(3) o narcotráfico agrega criminosos em todo o mundo e universalmente eles reagem com violência à intervenção pelos agentes responsáveis pela aplicação da lei, sejam ações tomadas de ofício pelas agências policiais ou por cumprimento à determinação judicial;

(4) a letalidade policial – à exceção de eventos episódicos de ilegal abuso consumado em execuções extrajudiciais – é natural consequência da lógica “ação/reação”, dependente da conduta do infrator no momento da intervenção pelos agentes responsáveis pela aplicação da lei (Resolução 34/169);

(5) é historicamente omisso o Governo Federal brasileiro nas questões da segurança pública e particularmente em relação às organizações criminosas, cuja atuação têm repercussão interestadual e/ou internacional, exigindo repressão uniforme, fazendo vistas grossas ao mandamento constitucional que atribui à Polícia Federal, “instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a […] prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho; […] exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; […] exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.”;

(6) historicamente, os discursos em torno do tema embalam ideologias, com difusão discursiva potencializada pelas redes sociais e que são objeto de locupletamento político eleitoral, sem enfrentar o problema com consistência e serenidade exigíveis para uma resposta eficiente e duradoura.

 

Azor Lopes da Silva Júnior, Prof. Dr.
Presidente do Instituto Brasileiro de Segurança Pública
Currículo Lattes
Orcid

The following two tabs change content below.

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.