ABORDAGEM POLICIAL: ENTRE A LEGALIDADE E A LEGITIMIDADE

(Ilustração [foto]: Marcello Casal Jr. Agência Brasil)

 

Dequex Araujo Silva Junior
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Não me causou espécie de forma alguma a medida tomada pela 6ª Tuma do STJ ao tornar ilegal a conduta de parar e revistar alguém realizada por uma guarnição da Polícia Militar que resultou na apreensão de drogas ilícitas (maconha e cocaína). O fato foi o seguinte: uma guarnição da Polícia Militar da Bahia ao revistar um indivíduo por atitude suspeita encontrou em sua mochila uma quantidade considerável de maconha e cocaína, resultando, assim, em sua prisão em flagrante delito.

A prisão do criminoso ensejou um Habeas Corpus[i] ajuizado com a finalidade de travar a ação penal contra o indivíduo abordado, pois foi alegado pelo advogado que as provas foram adquiridas de forma ilícita, visto que a abordagem policial fundada na “atitude suspeita” é genérica e insuficiente, ferindo, desta forma, os arts 240, § 2º, e 244 do Código de Processo Penal.

O relator, o Ministro Rogério Schietti Cruz, da 6ª Turma do STJ, delimitou a matéria da seguinte forma:

“A análise e a ser desenvolvida neste voto se propõe a enfrentar questões subjacentes ao tema da abordagem policial, referentes ao caso ora em exame e a outros similares, que aportam neste Superior Tribunal, comprometido, por missão constitucional, com a interpretação das leis federais e com a sua adequada e uniforme aplicação em todo o território”. (grifos do autor).

Mais adiante o relator expões que

“A questão central a que o voto pretende responder gira em torno de saber qual a exigência, em termos de standard probatório, para a realização de busca pessoal – vagamente conhecida como ‘dura’, ‘geral’, ‘revista’, ‘enquadramento’ ou ‘baculejo’ – a fim de definir se a mera alegação de ‘atitude suspeita’ é suficiente ou não para a medida”. (grifos do autor).

Alega o relator que denuncias ou intuição policial não justifica a “fundada suspeita”, pois carece de elementos objetivos e concretos, não obstante terem sidos encontrados com o indivíduo objetos ilícitos. Ou seja, para o ministro-relator e os demais membros, só justificaria a fundada suspeita se as drogas encontradas estivessem fora da mochila, expostas para todos avistarem. Mas isso contraria a própria ideia de suspeição, pois só é suspeito aquilo que não está evidente, aquilo que está oculto, que gera dúvidas, que carece de prova. No caso em tela, a suspeita gerou a confirmação como em muitos outros casos de flagrante originários de uma abordagem policial.

Não obstante o relator alegar a necessidade da objetividade da “fundada suspeita”, parte de um pressuposto subjetivo ao afirmar que a Polícia Militar toma como alvo das abordagens policiais os negros, pobres e moradores das periferias e favelas. Em um dos parágrafos deixa isso claro: “Em um país marcado por alta desigualdade social e racial, o policiamento ostensivo tende a se concentrar em grupos marginalizados e considerados potenciais criminosos ou usuais suspeitos, assim definidos por fatores subjetivos, como idade, cor da pele, gênero, classe social, local da residência, vestimentas etc. Sob essa perspectiva, a ausência de justificativas e de elementos seguros a legitimar a ação dos agentes públicos – diante da discricionariedade policial na identificação de suspeitos de práticas criminosas – pode fragilizar e tornar írritos os direitos à intimidade, à privacidade e à liberdade”. Em outros reafirma essa suposta discriminação racial por parte da polícia militar se fundamentando em pressupostos meramente opinativos e eivados por mitos sorelianos tais como o de racismo estrutural.

Não vou me alongar no teor do referido recurso de Habeas Corpus, pois demonstra o seu relator e os demais membros do STJ o total desconhecimento do mandato policial, em especial do mandato da Polícia Militar conferida pela Constituição e, por conseguinte, pelos cidadãos brasileiros. Vou me ater a responder o questionamento do próprio ministro-relator sobre “qual a exigência, em termos de standard probatório, para a realização de busca pessoal” a partir do esclarecimento das condições de legitimidade das atividades de parar e revistar realizadas pela Polícia Militar, que preza pela garantia das liberdades individuais e públicas por meio da preservação da ordem pública e da segurança das pessoas e dos seus bens.

O direito de ir e vir, como uma das liberdades públicas, e que, portanto, deve ser garantida pelo Estado através da força policial, não é de fácil proteção e garantia na sua efetividade dentro dos espaços públicos em sociedades democráticas. Muitas vezes a liberdade de locomoção é impedida por outras formas de liberdades públicas como, por exemplo, o direito de manifestação[ii].

É no espaço público que se exerce, concomitantemente, a liberdade de se locomover e a liberdade dos movimentos sociais das organizações e das associações que reivindicam demandas sociais em prol de direitos. Tais liberdades entram em conflitos muitas vezes, pois os movimentos reivindicatórios geralmente adotam como estratégia a limitação da livre circulação de pessoas e veículos[iii].

Nessas contradições, cabe às policiais militares brasileiras a função de regular nos espaços públicos o exercício das liberdades públicas, onde tais exercícios não podem colocar em xeque a ordem e segurança públicas, pois sem tais valores não é possível a existência das próprias liberdades.

A partir dessa proposição, o princípio da liberdade de locomoção esbarra, grosso modo, em algumas limitações: salvaguardar a segurança pública; manter a ordem pública; prevenir as infrações penais; proteger a saúde pública; e, proteger as liberdades individuais. Todas essas limitações são postas pela força pública no desenvolvimento das suas atividades cotidianas nos espaços públicos, quer de forma reativa ou proativa, quer de forma repressiva ou preventiva.

Dentre os recursos adotados pela Polícia Militar para o cumprimento de seu mandato constitucional e que limita a liberdade de locomoção do cidadão nos espaços públicos está a ação de parar e revistar, comumente conhecida como abordagem policial, mas que carece de um maior esclarecimento, pois esta ação não se baseia apenas na “fundada suspeita”. As abordagens podem ser:

Quanto à origem:

Proativas: são aquelas que se originam de interesses internos, grosso modo, motivados por situações de risco e fatores preditivos que podem gerar delitos ou desordens em uma localidade ou horário, bem como pela presença constante de desvios. Isto é, as ações proativas são aquelas em que a polícia escolhe os seus alvos a partir de elementos objetivos como, por exemplo, incidência de crime em um determinado local e horário;

Reativas: são aquelas que se originam do cidadão, mais notadamente de pessoas que são constantemente vitimadas ou que estão atemorizadas com os índices criminais ou de desordens em determinados locais ou horários. Ou seja, as ações reativas são aquelas em que o cidadão indica os seus alvos quer por situação de crime, medo ou desordem.

Quanto à finalidade:

Preventivas: são aquelas que visam evitar riscos e ameaças à segurança física e material dos cidadãos quando da utilização dos espaços públicos. Elas se direcionam geralmente à preservação da ordem, incluindo também ações educativas no caso de trânsito;

Repressivas: são aquelas que, grosso modo, se direcionam crimes ocorridos e para detecção de criminosos, se estendendo para a identificação de situações irregulares de trânsito ou de outras infrações cometidas na utilização dos espaços públicos. Elas se direcionam à aplicação da lei ou de normas administrativas.

As abordagens podem combinar ações proativo-preventivas, proativo-repressivas, reativo-preventivas e reativo-repressivas. As abordagens proativo-preventivas são aquelas em que a legitimidade é bastante questionada por parte da população, pois são vistas como invasivas e não possuidoras de um fundamento concreto para intervir na liberdade de locomoção, não obstante elas ocorrerem com o intuito de prevenir situações tidas como desviantes. Uma blitz preventiva objetivando averiguar se há indivíduos em veículos portando drogas ou armas é vista, grosso modo, pelas pessoas submetidas a revistas, e que não estão em situação de desvio, como ilegítima e, em muitos casos, como ilegais.

As abordagens proativo-repressivas, pelo fato de serem destinadas à aplicação da lei, são menos criticadas em comparação às proativo-preventivas, pois, apesar de não serem originárias do público externo, mas do órgão de aplicação da lei, visam averiguar, como numa situação de trânsito, se os condutores estão habilitados e se os seus veículos estão regularizados, sendo, assim, uma ação necessária do ponto de vista do cumprimento das normas de trânsito, pois a eficácia da lei necessita de um órgão fiscalizador para o seu cumprimento.

As abordagens reativo-preventivas gozam de legitimidade, pois são solicitadas pelo público externo para intervir em situações em que há presença de risco de ocorrências de desvios dentro de uma realidade específica. Ou seja, essa ação de parar e revistar visa reverter um sentimento de insegurança, numa dada pessoa ou comunidade, a partir de uma solicitação particular ou coletiva.

As abordagens reativo-repressivas, assim como as reativo-preventivas, gozam de mais legitimidade, pois, além de serem solicitadas pelo público externo, visam intervir em situações concretas, onde os índices de criminalidade são elevados dentro de uma realidade específica. Isto é, essa ação de parar e revistar visa reduzir o sentimento de insegurança física e material.

Apesar de gozarem de maior legitimidade dentro de contextos democráticos e liberais, as ações reativas, do ponto de vista dos direitos humanos e da justiça social, podem ser discriminatórias se as ações preventivas ou repressivas forem solicitadas por grupos dominantes contra grupos minoritários, cabendo uma prévia avaliação dos policiais. Por outro lado, as abordagens proativas, desse mesmo ponto de vista, podem ser menos lesivas aos grupos minoritários, pois os interesses policiais podem desconsiderar as diferenças de classes e étnicas e agir de forma imparcial visando especificamente cumprir o seu mandato.

O excesso dessas operações de abordagem de caráter proativo, entretanto, pode ser visto como um atentado à liberdade de locomoção, principalmente se tais operações tiverem pouca eficácia em sua finalidade, mas, por outro lado, o recurso de parar e revistar é necessário para a detecção de irregularidades, não podendo a polícia prescindir deste no cumprimento de sua função de prevenção e detecção do crime. Como encontrar um objeto de furto ou de roubo, bem como qualquer material ilício que, grosso modo, encontra-se oculto sem que se faça uma busca pessoal?

Depara-se aí com uma situação problema: como estabelecer um equilíbrio entre o dever policial de prevenir e detectar o crime com a liberdade de locomoção do cidadão nas vias públicas? Dentro do atual contexto nacional, onde há um elevado índice de criminalidade, o valor segurança em determinadas circunstância se sobressai ante o valor liberdade. Desconsiderar as manchas criminais, por exemplo, alegando que a policial age de forma discriminatória em locais e horários de maior incidência de crime é encobrir com um verniz ideológico a realidade das periferias das grandes e até mesmo das pequenas cidades, onde a população encontra-se sob o domínio dos traficantes de drogas.

A liberdade de locomoção, como uma das liberdades públicas, logo, concedida pelo Estado, não pode prescindir da proteção deste e, por conseguinte, da proteção policial, pois a força pública é responsável em manter a convivência das liberdades no espaço público ordenado e essa mantença passa pelo cumprimento do seu mandato policial que é a de preservar a ordem pública e garantir a incolumidade das pessoas e de seus bens.

Se cabe constitucionalmente à Polícia Militar zelar pela ordem pública, ou seja, zelar pela convivência ordenada, segura, pacífica e equilibrada de todos os cidadãos dentro do espaço público, então as abordagens policiais além de serem legais são legítimas, contanto que não atentem contra a dignidade e os direitos fundamentais das pessoas[iv].

Notas do Autor

[i] Recurso em Habeas Corpus nº 158580 – BA (2021/0403609-0). O referido recurso pode ser lido na integra no denuncia-anonima-intuicao-policial-nao.pdf (conjur.com.br).

[ii] RIVERO, Jean; MOUTOUH, Hugues. Liberdades públicas. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

[iii] Idem.

[iv] VERGOTTINI, Giuseppe. Verbete: ORDEM PÚBLICA. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad. Carmem C. Varriele et al.; coord. trad. João Ferreira; rev.geral João Ferreira e Luís Guerreiro Pinto Cacais. – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 13ª ed. 2007.

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