por Azor Lopes da Silva Júnior[1]
(Esta é a versão ampliada do artigo originalmente publicado na Revista Eletrônica MIGALHAS, ISSN 1983-392X)
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A Procuradora-Geral da República, Raquel Elias Ferreira Dodge, no dia 27 de dezembro de 2017, ajuizou perante o Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5874) contra o decreto de Indulto Natalino de 2017 (Decreto nº 9.246, de 21 de dezembro de 2017) [1], sob o argumento de que concederia indulto com uma série de afrontas à Constituição da República. Já no dia seguinte, durante o recesso forense[2], a Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, concedeu a liminar[3] requerida, decisão que teve destaque na homepage da Corte e na imprensa a partir do trecho onde afirma “Indulto não é e nem pode ser instrumento de impunidade … não se coadunam com a finalidade constitucionalmente estatuída a permitir o indulto, portanto, sem fundamento jurídico válido”.
Com efeito, se por hipótese nos abstrairmos e superarmos a questão de fundo – a eventual inconstitucionalidade da norma – inegavelmente a medida cautelar se faria necessária, pois operados os incidentes de execução penal, concedidas as comutações, e extinta a punibilidades dos beneficiados, seriam todos e em todas as comarcas do país postos em liberdade, tornando-se inócua uma decisão posterior em que se desse provimento a ação direta e se declarasse a inconstitucionalidade da norma impugnada, para obrigar os egressos a retornarem ao cumprimento de suas penas.
Não discutiremos aqui acerca da conveniência e acerto da decisão da Assembleia Nacional Constituinte em manter os institutos da anistia e do indulto na Constituição da República Federativa do Brasil – a apelidada “Constituição Cidadã” – tomaremos da Procuradora-Geral da República o referencial histórico do instituto[4] e não avançaremos no terreno movediço da elucubrações no sentido de que o Decreto nº 9.246, de 21 de dezembro de 2017, tenha sido concebido para beneficiar os réus e apenados da “Operação Lava Jato” e outras havidas no combate à corrupção.
O ponto de partida desse estudo deve ser a natureza e as subespécies de indulto e sua distinção em relação a outras formas de “indulgentia principis”. Sua natureza jurídica é de ato normativo administrativo de efeitos penais, daí porque a autoridade legitimada para sua criação – o Chefe do Poder Executivo – realiza, com amparo constitucional, função jurisdicional que lhe é atípica, extinguindo a punibilidade e, assim, desconstituindo a coisa julgada penal na forma de perdão ao condenado. A Constituição de 1988 adotou como formas de “clementia principis” a anistia e a graça (Art. 5º, XLIII) e o indulto (Art. 84, XII); a Constituição Federal prevê a anistia como forma de perdão dirigida a fatos considerados crimes e não aos seus respectivos autores (ainda que lhes beneficiem)[5], dependente de lei aprovada pelo Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República (Arts. 21, XVII; 48, VIII), enquanto o indulto e suas subespécies surgem na forma de decreto e se dirigem ao perdão de pessoas. Dessa forma vemos como subespécies de indulto: a “graça” nada mais é que indulto individual, previsto no artigo 188 da Lei de Execução Penal (LEP); a “comutação da pena”, que é uma forma de indulto parcial, ou seja, em que o perdão atinge parcela da pena aplicada e não a sua totalidade; e, por fim, há o indulto geral, que é dirigido a uma coletividade indeterminada de condenados (Art. 193 da LEP). De todos, o instituto mais frequente – que no Brasil historicamente ocorre às vésperas do Natal de cada ano – é o resultante da combinação desses conceitos: o indulto parcial e geral, ou seja, uma comutação de pena coletiva.
De fato, como o decreto de indulto é ato normativo dotado de generalidade, de abstração e de autonomia, ele possui a característica de primariedade normativa exigida para que se lhe ajuíze o controle concentrado de constitucionalidade e, superada a questão do cabimento da medida, sustenta a Procuradora-Geral ter havido excesso no decreto, pois que foi além dos limites da discricionariedade que lhe é peculiar para atingir o status de arbitrário, violando o princípio da separação e da harmonia dos poderes (Executivo e Judiciário); em suas palavras: “não é dado ao Presidente da República extinguir penas indiscriminadamente, como se seu poder não tivesse limites: e o limite do seu poder, no caso de indulto, é o livre exercício da função penal pelo Poder Judiciário”.
O argumento de desrespeito a limites vem do fato de que, historicamente, somente o vigente decreto ousou beneficiar todos os condenados que houvessem cumprido 1/5 da pena imposta, sem estabelecer qualquer limitação quanto ao patamar máximo de pena aplicada. Numa retrospectiva histórica Raquel Elias Ferreira Dodge mostra que desde 1999 (Decreto nº 3226) até 2006 (Decreto nº 5993) – excetuado o Decreto nº 3667 do ano de 2000 – a comutação (indulto parcial) seria cabível quando a pena aplicada fosse inferior a 6 anos e já tivessem sido cumpridos mais de 2 anos; no período de 2007 (Decreto nº 6294) até 2009 (Decreto nº 7046) essa comutação teria sido ampliada para condenações a penas de no máximo 8 anos, mantida a exigência de cumprimento de pelo menos 1/3 dela para concessão do benefício; por fim, no período de 2010 (Decreto nº 7420) até 2016 (Decreto nº 8940) teria havido nova ampliação para apenados de até 12 anos e mantida o cumprimento de 1/3.
Mais que simplesmente aduzir ter havido violação do princípio da razoabilidade, a Procuradora-Geral da República chega a afirmar que o Decreto nº 9.246, de 2017, “será causa única e precípua de impunidade de crimes graves, como aqueles apurados no âmbito da ‘Operação Lava Jato’ e de outras operações contra a corrupção sistêmica e de investigações de grande porte ocorridas nestes últimos anos”.
Outro argumento apresentado na ação é de que o Decreto nº 9.246, de 2017, teria violado o princípio constitucional da individualização da pena (Art. 5º, XLVI); nesse ponto, a autora elabora interessante operação de lógica jurídica; afirma que tal e qual se impõe ao Poder Judiciário individualizar a pena, igualmente se exigiria ao Chefe do Poder Executivo ao conceder o indulto, à medida em que exerce atipicamente função jurisdicional, decretando a extinção da punibilidade.
Todavia, não nos pareceu tão feliz outro argumento em que se afirma que a edição do Decreto nº 9.246, de 2017, teria ferido o artigo 62, § 1º, I, “b”[6], da Constituição Federal, pois que o instituto do indulto teria “finalidade de correção de injustiças pontuais” e, no caso, teria se mostrado mais que isso: uma “verdadeira norma descriminalizante”, traduzindo-se em vedada ação legiferante do Poder Executivo em matéria penal. Nossa crítica se justifica porque não há que se confundir a espécie normativa “decreto” com diversa norma “Medida Provisória”, o que é algo de que não se pode esquivar uma autoridade jurídica de expressão nacional como o é aquele que ocupa o cargo de Procurador-Geral da República. O mesmo se diga em relação ao argumento de que o Decreto nº 9.246, de 2017, teria ferido os limites postos na Constituição da República por seu artigo 5º, XLII (“a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos”); ora, aquilo em que a norma constitucional já opera clara e expressa vedação não se faz necessário repetir no decreto de indulto; haveria inconstitucionalidade aviltante caso o decreto concedesse indulto nos casos em que a lei maior o proíbe…
Ora, o indulto é uma das espécies de “clementia principis” historicamente adotada pelo Brasil e por todas as repúblicas civilizadas, como medida humanitária de extinção da punibilidade a ser conferida pelo chefe do Poder Executivo.
Uma confusão em que alguns operam é a de afirmar que incida em inconstitucionalidade a concessão de indulto com dispensa de parecer de órgãos colegiados[7]. De início, merece destaque que, quando a Lei de Execução Penal, por seu artigo 70, atribuí ao Conselho Penitenciário o encargo de emitir parecer sobre indulto e comutação de pena, a norma se refere a um órgão estadual e ao processo de avaliação de uma das formas de indulto – o indulto individual, também denominado “graça” – e não ao indulto coletivo parcial (comutação da pena) ou indulto coletivo total, decretados exclusivamente pelo Presidente da República com fundamento direto na norma constitucional[8] que, frise-se, é clara em atribuir facultatividade à participação de qualquer outro órgão na avaliação das regras e limites para a concessão do benefício.
No mais, o argumento que sobrevive ao debate é tão somente baseado na razoabilidade e, factualmente, no efeito prático sobre apenados de “colarinho branco” alcançados pela “Operação Lava Jato” e outras de resultados e atores semelhantes. Ainda assim, sem respaldo jurídico consistente a tese de limitação dos poderes da “clementia principis”, seja recorrendo à interpretação histórica, à interpretação literal, teleológica ou a qualquer outro recurso de hermenêutica.
A nosso ver, sob os olhos do Direito como ciência, a ação deveria ao final ser fadada ao fracasso pela inconsistência de seus argumentos, ainda que possa representar o legítimo anseio daqueles que operaram, aplaudiram ou viram o ideal de justiça igualitária a partir das ações de combate à corrupção em nosso país; contudo, em tempos em que se judicializa a política e se politiza a justiça é temerário esperar com certeza a vitória da lógica e da norma jurídica…
NOTAS
[1] Art. 1º O indulto natalino coletivo será concedido às pessoas nacionais e estrangeiras que, até 25 de dezembro de 2017, tenham cumprido: I – um quinto da pena, se não reincidentes, e um terço da pena, se reincidentes, nos crimes praticados sem grave ameaça ou violência a pessoa; Art. 2º O tempo de cumprimento das penas previstas no art. 1º será reduzido para a pessoa: […] § 1º A redução de que trata o caput será de: I – um sexto da pena, se não reincidente, e um quarto da pena, se reincidente, nas hipóteses previstas no inciso I do caput do art. 1º; Art. 8º Os requisitos para a concessão do indulto natalino e da comutação de pena de que trata este Decreto são aplicáveis à pessoa que: I – teve a pena privativa de liberdade substituída por restritiva de direitos; II – esteja cumprindo a pena em regime aberto; III – tenha sido beneficiada com a suspensão condicional do processo; ou IV – esteja em livramento condicional. Art. 10. O indulto ou a comutação de pena alcançam a pena de multa aplicada cumulativamente, ainda que haja inadimplência ou inscrição de débitos na Dívida Ativa da União, observados os valores estabelecidos em ato do Ministro de Estado da Fazenda. Parágrafo único. O indulto será concedido independentemente do pagamento: I – do valor multa, aplicada de forma isolada ou cumulativamente; ou II – do valor de condenação pecuniária de qualquer natureza. Art. 11. O indulto natalino e a comutação de pena de que trata este Decreto são cabíveis, ainda que: I – a sentença tenha transitado em julgado para a acusação, sem prejuízo do julgamento de recurso da defesa em instância superior; II – haja recurso da acusação de qualquer natureza após a apreciação em segunda instância; III – a pessoa condenada responda a outro processo criminal sem decisão condenatória em segunda instância, mesmo que tenha por objeto os crimes a que se refere o art. 3º; ou IV – a guia de recolhimento não tenha sido expedida.
[2] A Lei nº 9.868/1999 excetua, em seu art. 10, a regra da submissão da medida cautelar ao Plenário do Supremo Tribunal no recesso forense, quanto compete ao Presidente decidir questões urgentes (Art. 13, VIII, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal).
[3] “Pelo exposto, pela qualificada urgência e neste juízo provisório, próprio das medidas cautelares, defiro a medida cautelar (art. 10 da Lei n. 9.868/1999), para suspender os efeitos do inc. I do art. 1º; do inc. I do § 1º do art. 2º, e dos arts. 8º, 10 e 11 do Decreto n. 9.246, de 21.12.2017, até o competente exame a ser levado a efeito pelo Relator, Ministro Roberto Barroso ou pelo Plenário deste Supremo Tribunal, na forma da legislação vigente.” (STF. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.874-DF. Ministra CÁRMEN LÚCIA, Presidente. Relator: Ministro ROBERTO BARROSO. Requerente: Procuradora-Geral da República, Brasília, 28 de dezembro de 2017).
[4] Ainda assim, a autora da ADI registra as origens históricas do indulto: “Com referências esparsas ainda mais remotas ao Egito (cf. DORADO MONTERO, P., El Derecho Protector de los Criminales, T. II, Libre G. Victoriano Suárez. Madrid, 1945. pp. 339 y 340.) e à Grécia Antiga, por meio da lei do esquecimento. Neste sentido, veja-se: SAN MARTÍN, Jerónimo García. El Control jurisdicional del indulto particular. Las Palmas de Gran Canaria, 2006”.
[5] Como exemplo, vale citar a anistia concedida pelo Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: “Art. 8º. É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos.”.
[6] Art. 62. […] § 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria: I – relativa a: […] b) direito penal, processual penal e processual civil;
[7] Sustentando a inconstitucionalidade: RIBEIRO, Rodrigo de Oliveira. Falta de parecer do Conselho Penitenciário é inconstitucional. Revista Consultor Jurídico, 5 de janeiro de 2014. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-jan-05/rodrigo-ribeiro-dispensa-parecer-conselho-penitenciario-inconstitucional. Acesso em: 28 dez. 2017.
[8] Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: XII – conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei.