“Saiu” a Lei do Sistema Único de Segurança Pública! Como afinal monitorar a sinergia entre os três níveis federativos?

MARCINEIRO, Nazareno & REIS, Gilberto Protásio dos[1]

 

A segurança pública brasileira tem padecido de uma crise crônica de esterilidade explicativa. Há uma dificuldade generalizada de perceber e aplicar conceitos e isso se deve à subestimação da força esterilizante tanto do empirismo radical como do idealismo puro[2]. Uma das medidas adotadas pelas autoridades competentes para lidar com um dos aspectos desse problema – a falta de sinergia no interior da Administração Pública nos três níveis da Federação, no trato com a criminalidade – é a edição de lei federal instituindo o instrumento legal para que induza a integração de esforços. Nesse sentido, o Senado acaba de aprovar e enviar para a sanção do Presidente da República o Projeto de Lei da Câmara n° 19, de 2018, que institui o Sistema Único de Segurança Pública (Susp).

Essa inovação legislativa apresenta alguns pontos que podem ser pensados a partir das insuficiências que o texto apresenta e das oportunidades que ela enseja. Em relação a estas últimas, os autores, membros do Instituto Brasileiro de Segurança Pública (IBSP), vêm aqui apresentar duas metodologias – partindo de experiências de sucesso havidas por pesquisadores policiais-militares que o integram – em Santa Catarina e Minas Gerais. Volta-se a esse ponto mais adiante. Quanto às primeiras, falta sistematicidade ao conjunto da obra, que mais parece uma “colcha de retalhos” feita para atender interesses múltiplos em vez de ajudar a atingir um objetivo comum a todos os envolvidos. Tal fragilidade se observa no nível conceitual, prático e temático.

Conceitualmente, a lei mostra-se desprovida de uma inteligência unificadora, que teria dado ao texto aquilo que o legislador parece ter pretendido, mas não conseguiu realizar: é indubitável, a começar da ementa dessa lei, a intenção de gerar um processo de segurança pública, pois a União está por via dessa inovaçao legislativa intervindo em questões operacionais que fogem da sua esfera de responsabilidade. Contudo, uma lei que se propõe a gerar um sistema teria que restringir a sua abordagem à dimensão Estratégica, propondo Políticas e Diretrizes, conforme é possível visualizar na figura abaixo, coisa que na redação legal não ocorreu. Teria sido coerente organizar o texto (e a atuaçao dos órgãos) em níveis e funções, indicando a habilidade demandada e os documentos a serem produzidos em cada um daqueles.

quadro marcineiro susp pdf

Tal deficiência da norma ora analisada denota uma desconsideração do conceito de sistema, o qual não se confunde com (nem se limita a) o de conjunto de órgãos. O “caput” do artigo 9º traz isto, pois ali se lê que o Susp tem no centro o Ministério Extraordinário da Segurança Pública (MESP) e na composição, as organizações relacionadas no art. 144 da Constituição da República, os agentes penitenciários, as guardas municipais e outros –, mas passa longe do que realmente é um sistema, na clássica definição dada pelo biólogo austríaco Ludwig von Bertalanffy (1901-1972), que idealizou a “teoria geral dos sistemas”, como “o conjunto de fatores interligados com funções específicas[3]. O esquema destes – no caso o sistema da segurança pública – é o composto pelas ideias de prevenção, reação e punição; e cada uma delas engloba órgãos que atuam em momentos (e processos gerenciais) distintos do enfrentamento da criminalidade. Não basta, por isso, indicar quem integra o organograma federativo, mas sim como as partes devem se intercomunicar.

Ainda na dimensão das falhas conceituais, nota-se nessa lei que o descuido em relação ao referido conceito central engendra um outro: o da adoção de um subconceito anacrônico, muito limitado quando considerada a ideia maior de sistema. Esse problema é observável no artigo 6º, II, que prevê, dentre os objetivos da Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS, uma hipersigla de difícil memorização e nulo valor comunicativo!), o apoio às ações de manutenção da ordem pública, bem como da incolumidade das pessoas, do patrimônio, do meio ambiente, além de aos bens e direitos, genericamente postos na redação. O uso do vocábulo “manutenção” nesse contexto denota claramente uma desconexão da lei com a teoria de polícia vigente, na qual essa palavra foi há muito tempo substituída por outra mais abrangente (“preservação”), que tem alcance maior ao envolver a ideia de restauração.

Do ponto de vista prático, outra insuficiência na redação dessa lei é a ausência de um esquema de cooperação entre os órgãos de segurança pública e os de persecução penal e justiça criminal. A prática do trabalho das Polícias Militares não deixa dúvidas de que os promotores de justiça e os juízes de Direito têm importância crucial na engrenagem da reação criminal, conforme fica nítido no caso dos Termos Circunstanciados de Ocorrência (TCOs), avanço importante conquistado por essas corporações a partir da iniciativa tomada na esteira da Lei Federal nº 9.099, de 23 de setembro de 1995, de modo pioneiro em todo o país, nos anos 1990, em São José do Rio Preto, interior de São Paulo[4].

Quanto à questão temática, há um descabido encaixe de temas sindicalistas, como é o caso do artigo 9º, § 3º, que traz uma caracterização da atividade dos agentes penitenciários como sendo de natureza policial. Essa demanda é antiga por parte da categoria, que faz tempo almejava ser tratada como polícia, mas isso nada tem de elos com a coisa da qual o Susp precisa cuidar. O mesmo se diga do artigo 44: nele volta-se ao deslocado tema da natureza policial, desta feita quanto ao tempo de serviço dos profissionais aludidos no artgo 144 da Constituição, nítida reincidência de desvio temático.

Inobstante essas falhas inegáveis, a Lei do Susp abre possibilidades interessantes. Uma delas é a que se vê no artigo 26, que institui, no âmbito desse sistema um outro: o Sistema Nacional de Acompanhamento e Avaliação das Políticas de Segurança Pública e Defesa Social (Sinaped). Apesar da confusão terminológica e da redundância de um sistema dentro de outro, a ideia é boa. Ademais, o artigo 31, III, dispõe que haverá uma análise global e integrada entre diagnósticos, estruturas, compromissos, finalidades e resultados, no tocante às políticas de segurança pública e defesa social. Nesse sentido, a oportunidade aberta é a de o IBSP cooperar com o MESP com duas metodologias: uma que foi testada na Polícia Militar de Santa Catarina (PMSC) e outra que foi testada, quanto à viabilidade, no Sistema de Defesa Social de Minas Gerais.

Quanto à primeira, trata-se da Metodologia Multicritério em Apoio da Decisão – Construtivista (MCDA-C). Ela consiste em integrar o desempenho dos órgãos quanto aos indicadores. Isso é importante porque viabiliza o atendimento dos critérios que estão subentendidos nessa lei: (i) abordagem; (ii) singularidade; (iii) processo para identificar; (iv) mensuração; (v) integração; e (vi) gestão, que poderão ser definidos oportunamente. A esse respeito, o seu uso na PMSC apresentou considerável resultado no planejamento estratégico daquela Corporação, a partir do ano de 2.011[5], tendo gerado bons resultados na segurança pública do Estado, conforme restou provado na pesquisa sobre as melhorias na cidade de Camboriú[6].

Já a segunda consiste na Metodologia de Gestão de Projetos Complexos de Longo Prazo[7], que engloba cinco indicadores para monitorar: (i) o nível de coerência entre planejamento e execução orçamentária, (ii) a cooperação estratégica entre organizações que estejam irmanadas em uma estratégia e metas comuns, (iii) a gestão do conhecimento entre os níveis técnicos formadores dessa rede, (iv) a ênfase em processos e resultados, numa lógica menos burocrática e mais gerencial, e (v) o discernimento ético da população. Este último indicador torna possível acompanhar aquilo que, nos anos 1.970, o jurista Heleno Fragoso já identificara como indispensável a todo esforço do Estado na segurança pública: evitar que pessoas de bem se tornem criminosas[8].  Essa tipologia teve sua versão em linguagem menos técnica circulando nas bancas de revistas especializadas em tecnologia e defesa de todo o Brasil, em 2010[9], depois foi testada empiricamente e aprovada no nível da comunidade de técnicos atuantes no Sistema de Defesa Social de Minas Gerais, em 2011[10], recebeu apoio editorial da Secretaria Nacional de Segurança Pública[11], no mesmo ano, bem como do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)[12] em 2013.

A segurança pública é responsabilidade de todos. Com essas duas metodologias os autores acreditam que o IBSP esteja pronto para colaborar para que o sucesso da Lei do Sistema Único de Segurança Pública não fique condicionado apenas ao hercúleo esforço das corporações que ela mobiliza. A segurança pública no Brasil precisa ser entendida e administrada de forma sistêmica, com a devida ancoragem científica em conceitos claros, processos de gestão bem definidos e instrumentos de avaliação à altura da complexidade desse empreendimento.

 

* Nota da Redação: o texto dos autógrafos do Projeto de Lei da Câmara n° 19, de 2018, enviado à sanção presidencial em 22/05/2018 está disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7734534&disposition=inline

 

Notas

[1] Texto e notas elaborados por Nazareno Marcineiro, membro associado do IBSP, Doutor e Mestre em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina (2001/2017). Atualmente é coronel da Reserva Remunerada da Polícia Militar de Santa Catarina, tendo exercido os cargos de Comandante-Geral da Polícia Militar do Estado de Santa Catarina entre janeiro de 2011 a maio de 2014, Presidente do Conselho Nacional de Comandantes-Gerais de Polícias e Bombeiros Militares (2012) e Diretor da Força Nacional de Segurança Pública em 2015, e coelaborado por Gilberto Protásio dos Reis, Presidente do Conselho Editorial do IBSP, Coronel da Reserva da Polícia Militar de Minas Gerais, Doutor em Ciências Sociais (PUC/MG), Mestre em Administração Pública (FJP/MG), Especialista em Gestão Estratégica da Segurança Pública (FJP/MG), Especialista em Segurança Pública (FJP/MG). Homenageado pelo Governo de Minas Gerais, em 2006 e 2008, com o II e o IV “Prêmio Excelência em Gestão Pública do Estado de Minas Gerais”, por inovações na gestão estratégica da segurança pública; membro em 2007 do Grupo de Trabalho da SENASP/Ministério da Justiça para a elaboração de uma plataforma nacional de avaliação do desempenho das organizações policiais brasileiras, e da Secretaria de Estado de Defesa Social/Governo de Minas Gerais, em 2009, 2010 e 2011 (recondução), sobre avaliação do desempenho dos órgãos do sistema de defesa social.

[2] REIS, Gilberto Protásio dos. O Instituto Brasileiro de Segurança Pública e o desafio da escolha do paradigma para alta performance na observação científica da criminalidade. Revista do Instituto Brasileiro de Segurança Pública, v. 1, n. 1, p. 24-54, 2018. Disponível em: < https://ibsp.org.br/ibsp/revista/index.php/RIBSP >. Acesso em: 23 maio 2018.

[3] BERTALANFFY, Ludwig von. General systems theory: foundations, desevelopment, aplications. New York: George Braziller, 1968.

[4] SILVA JÚNIOR, Azor Lopes da. Prática policial: um caminho para a modernidade legal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 38, 1 jan. 2000. Disponível em: < https://jus.com.br/artigos/1596 >. Acesso em: 25 maio 2018.

[5] MARCINEIRO, N. ; TASCA, J. E. ; ROSA, I. O. ; ENSSLIN, L. ; FORCELLINI, F. A. . Plano de Comando da Polícia Militar de Santa Catarina: a construção de um modelo de gestão por meio da MCDA-C. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 9, p. 184-210, 2015.

[6] REIS, R. R. ; MARCINEIRO, N. . Análise da Contribuição da avaliação de desempenho da PMSC na redução dos indicadores de letalidade violenta na cidade de Camboriú em 2013. Ordem Pública, v. 7, p. 79-99, 2014.

[7] REIS, Gilberto Protásio dos. Políticas de Estado na segurança pública: metodologias para gestão de longo prazo no Brasil. São Paulo: Sicurezza, 2014.

[8] Ele afirma que “[…] a luta contra a criminalidade deve ser reconhecida como uma das tarefas mais importantes da sociedade e […] essa luta exige meios de ação diversos […] não apenas proteger a sociedade contra os criminosos, mas também proteger os membros da sociedade contra o risco de tornarem-se criminosos.” In: FRAGOSO, Heleno. Prefácio. In: ANCEL, Marc. A nova defesa social. Rio de Janeiro: Forense, p. vii-viii, 1979.

[9] LISTGARTENS. C. ; Protásio,Gilberto. . GovernançaAccountability e Políticas Públicas de Longo PrazoTecnologia & Defesa, São Paulop18 – 2501 dez. 2010.

[10] SANTOS, Edson dos. Criação e compartilhamento de conhecimentos no sistema de Defesa Social mineiro. Belo Horizonte: Faculdade de Engenharia de Minas Gerais, 2011 (Monografia de Conclusão de Curso em Engenharia de Produção). MARQUES, Marieta Apgaua. Governança social, accountability e políticas públicas em Minas Gerais: percepção sobre indicadores de gestão de longo prazo no Conselho de Defesa Social. Belo Horizonte: Escola de Formação de Oficiais da Academia de Polícia Militar de Minas Gerais, 2011. (Monografia de Conclusão do Bacharelado em Ciências Militares com ênfase em Defesa Social).

[11] REIS, Gilberto Protásio dos. Gestão da Segurança Pública no Brasil: vetores de análise e dimensões de gestão de projetos interorganizacionais de longo prazo. Revista Segurança, Justiça e Cidadania, Brasília, v. 3, n. 5, p. 151-176, 2011. Disponível em: < http://www.justica.gov.br/sua-seguranca/seguranca-publica/analise-e-pesquisa/download/revista_seguranca/revista-seguranca-justica-e-cidadania_numero-5.pdf >. Acesso em: 24 maio 2018.

[12] REIS, Gilberto Protásio dos [et al]. Gestão da defesa social em Minas Gerais: contar crimes é suficiente? Revista Brasileira de Segurança Pública. São Paulo, v. 7, n. 2, 162-181, ago-set 2013. Disponível em: < http://revista.forumseguranca.org.br/index.php/rbsp/article/viewFile/333/153 >. Acesso em 24 maio 2018.